Enem digital evidencia a desigualdade social e educativa

Se tecnologicamente o vestibular pode ser considerado um acerto, pedagogicamente ainda é algo a ser discutido
por
Daniel Dias
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17/09/2021 - 12h

Por Daniel Dias

 

A tecnologia continua a evoluir a passos que a humanidade ainda se surpreende. Anos atrás os emails substituíram as cartas e após isso aplicativos como o Whatsapp, encontrados nos smartphones, deixaram tudo ainda mais prático.

Por muito tempo saber mexer nesses aplicativos era algo somente para o público adulto ou para pessoas que estudaram sobre o assunto, por conta da complexidade apresentada. Porém, hoje em dia são os jovens que comandam a utilização da tecnologia.

A geração atual praticamente nasce sabendo utilizar um celular ou um computador, sendo agora eles a ensinar os adultos. Tudo se tornou mais prático. Os livros físicos vêm sendo substituídos por digitais, as perguntas que necessariamente teriam que ser feitas para professores podem ser encontradas no Google, entre outras questões.

Por conta dessa evolução, tanto dos jovens quanto da própria tecnologia, o mundo e suas mais diversas áreas tiveram que se modernizar para não se tornar algo retrógrado em relação a esta geração. Recentemente, a área que sofreu com tal alteração foi a educação, as apostilas vem deixando de serem utilizadas e sendo substituídas em escolas que possuem condição, por tablets. Os livros que são indicados para leitura podem ser baixados em celulares, e provas podem ser feitas de modo digital.

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) decidiu realizar em 2020, criando o ENEM digital para diminuir o gasto de folhas impressas, facilitar a correção da prova e também a velocidade da liberação dos resultados. Em relação a tecnologia, a ideia é interessante, pois ajuda em diversas questões ambientais e praticidade, no entanto por ser eletrônico ainda pode apresentar problemas como panes elétricas, falta de energia e outras questões.

Entretanto, e pedagogicamente falando? Como isso afeta os estudantes, escolas e cursinhos preparatórios? Tal mudança é realmente uma melhoria para a educação e será que é mesmo algo justo? Todos estarão prontos para realizar a prova digital até 2026 como está previsto?

A coordenadora Yanka Xavier do Cursinho Comunitário A-SOL, em Guarulhos, acredita que no momento a tecnologia possa escancarar a desigualdade social no sentido de auxiliar jovens da periferia a entrarem no ensino superior.

Mulher branca de cabelos pretos um pouco abaixo da linha do ombro . Está usando uma blusa preta, óculos pretos, um brinco de argola na orelha esquerda, e um piercing na região do nariz. Possui uma tatuagem de flor na região do peito, outra no braço direito
Yanka Xavier, coordenadora do cursinho A-Sol (Foto: Revista A-Sol)


Agemt: Como você vê essa mudança de alguns vestibulares, principalmente, do Enem para o digital? 

Yanka Xavier: Como coordenadora do cursinho A-Sol, percebi que, pelo menos nas periferias onde atuamos, não houve antes da implementação das provas digitais, o letramento e treinamento necessário para manter a qualidade na avaliação dos estudantes. Acredito que a tecnologia deve sim servir a melhorias, principalmente na questão do gasto de papel em relação ao meio ambiente, mas ainda assim percebemos que instituições como o INEP, por exemplo, atropelaram essa questão sem o fundamental preparo prévio dos estudantes, o que pode salientar ainda mais a desigualdade no acesso às provas, e não o contrário como impele a proposta. Muitos, por exemplo, mal tem contato com computador em casa e só acessam a rede de internet pelo celular que muitas vezes não tem a mesma qualidade de processamento e ferramentas.


Agemt: Você acredita que pedagogicamente falando, essa mudança facilita ou complica a vida dos estudantes e instituições de ensino a se prepararem para o vestibular? 

Yanka Xavier: Acredito que se houver o investimento no preparo, ou seja, no letramento digital e o investimento em maquinário principalmente com os estudantes que não tem condição alguma de ter um computador em casa, pode ser que comecemos a implementar a ideia de forma que atenda as demandas sem precisar atropelá-las. Como essa ideia foi imposta numa situação precária onde muitos estão mais preocupados em manter empregos e não passar fome do que conseguindo priorizar os estudos, acredito que surge aí o aumento da insegurança e não a melhoria no preparo do estudante para determinada prova. 

 

Cursinho Comunitário Arrastão da Solidariedade (símbolo do A-SOL)

Agemt: Neste momento, o cursinho tem condições de auxiliar os alunos a prestar o Enem digital? Com computadores que já os habituem a tal prova

Yanka Xavier: Como somos um movimento social e militantes voluntários, sem exceção, dependemos muito um do outro para fazer as coisas acontecerem, visto que, na cidade o poder público tão pouco se preocupa com a existência de cursinhos comunitários ou vimos o Estado com essa preocupação com o ensino médio, por exemplo, pelo menos nessa atual gestão. Por outro lado, mesmo sem qualquer apoio, sempre disponibilizamos questionários para saber como anda cada um deles e fazemos levantamentos per capita de quantos de nossos estudantes possuem ou não computador e internet em casa, ou se trabalham, tem o que comer, etc. Assim, podemos buscar soluções no nosso alcance para resolver um problema que não está na nossa alçada, visto que essas obrigações fundamentais teria de vir dos órgãos responsáveis já que o cursinho só existe porque o Estado ainda não tem cumprido seu papel de eficiência nas escolas, por outro lado, vem sucateando e privatizando as instituições de ensino. O resultado disso é menos acessos e menos soluções para problemas estruturais. Basta observar que este ano batemos recorde de baixa nas inscrições para o Enem em qualquer formato.


Agemt: Acredita que esse novo formato seja justo para todos os alunos? Desde os que possuíam uma qualidade financeira melhor até os de periferia?

Yanka Xavier: Acredito que este novo formato sem investimento e resoluções para problemas concretos e estruturais, pode na verdade salientar a desigualdade entre os estudantes no momento da prova com as justificativas que expliquei anteriormente. 

Agemt: Por enquanto esses vestibulares são somente opcionais, porém é estipulado que até 2026 o Enem será somente digital. Até lá, em relação a estrutura, a método de ensino e até mesmo pedagogicamente no geral, vocês já se vêm prontos para tal feito? 

Yanka Xavier: Sobre o corpo docente e a equipe diretiva e pedagógica do A-Sol, temos voluntários especialistas em ciência da computação e contamos com projetos voltados ao letramento digital a partir do ano que vem (2022). Nossa luta agora será conseguir equipamentos para que esse feito seja concretizado. Mas com certeza todo o estudante que entrar no A-Sol poderá contar com a força da nossa militância para que tenha um bom alcance em suas provas e consiga enfim alcançar seus sonhos e uma vida melhor. A gente acredita muito no potencial dos estudantes das periferias, mesmo que seja a classe mais prejudicada com toda a realidade material imposta a elas e a eles.