“É tudo por dinheiro! Tem muito dinheiro envolvido”

Enquanto busca provar judicialmente sua importância histórico-cultural para a sociedade paulistana, o centenário Santa Marina Atlético Clube se vê obrigado a fechar as portas
por
Bianca Abreu
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30/06/2023 - 12h

 

 

 

Entrada da agremiação na manhã da reintegração. Foto por Bianca Abreu.
Entrada da agremiação na manhã da reintegração. Foto por Bianca Abreu.

 

14 de junho de 2023. 8 horas da manhã. Dependências do centenário Santa Marina Atlético Clube. Data, horário e local determinados pela justiça para mais um episódio da batalha judicial entre a agremiação e a multinacional francesa Saint-Gobain. A empresa e o Santa Marina AC estão em conflito na busca do direito de posse do espaço desde 2007. Um ato em defesa do clube foi imediatamente convocado pela comunidade Santa Marina para o momento da ação judicial.

 

Primeiro contato entre representantes do Santa Marina AC e multinacional Saint-Gobain. Foto por Bianca Abreu
Primeiro contato entre representantes do Santa Marina AC e multinacional Saint-Gobain. Foto por Bianca Abreu

 

Naquela manhã fria e chuvosa em São Paulo, os representantes da corporação se reuniram com os membros envolvidos na defesa do clube dentro da sala de troféus e, após cerca de uma hora, foi firmada a desocupação. Entre as pessoas reunidas, estavam o presidente do Santa Marina AC, Francisco Ingegnere, e sua irmã, Rose Ingegnere, juntos ao advogado da agremiação, Caio Marcelo Dias e de Kelseny Medeiros, assessora da Deputada Federal Erika Hilton (PSOL-SP), autora do projeto de lei que requer o tombamento do local como patrimônio histórico-cultural.

Ao final da reunião, Dias anunciou que o mandado seria cumprido pacificamente e “todos os bens do clube farão parte de um catálogo, que daqui de dentro não sairá um grão de areia”. Segundo o advogado, a Saint-Gobain se comprometeu a zelar pela integridade do espaço e do acervo ali presente. Rose demonstrou não confiar na promessa, e teme descuido com as instalações do clube e com os cachorros que ali viviam. “Não vão cuidar. Será que vão cuidar? Será? Eu duvido”, disse.

Além do choro de tristeza dos membros da comunidade, houve gritos fervorosos de “palhaçada, ein”, “vergonha” e “não vamo ‘para’”, intercalados com outras duras críticas dos pais, professores e demais admiradores do clube ali mobilizados direcionadas aos representantes da multinacional. “Lamentável. Empresa francesa destruindo a história do futebol brasileiro. Viva a várzea! Resistência!”, gritou um deles. Emocionado, Chiquinho prometeu: “Nós vamos reverter isso aí”.

 

Turma matutina de futsal infantil realiza sua última aula na manhã da reintegração de posse. Foto por Bianca Abreu.
Turma matutina de futsal infantil realiza sua última aula na manhã da reintegração de posse. Foto por Bianca Abreu.

 

“A gente podia continuar com as atividades aqui, porque enquanto não sair a decisão do Ministério Público, eles não vão poder fazer nada, eles não vão poder mexer. Então o que incomoda eles da gente ficar aqui. Sabe? Continuar com as atividades. A gente nunca pediu nada pra eles, a gente vive aqui dos colaboradores. A gente nunca bateu na porta deles pra pedir dinheiro”,  desabafou Rose. De acordo com ela, mais de 140 crianças ficarão desamparadas.

 

“Nós já tinha um clube muito maior, e 'ficamo' (sic) com esse pedacinho, e ainda eles quer tirar. Uma firma que é só dinheiro”, lamenta o presidente da SMAC

Francisco Ingegnere está à frente do clube desde 1989 e sua irmã, Rose, desempenha funções administrativas no local há 20 anos. Juntos, cuidam do Santa Marina AC, que está localizado em uma área avaliada em cerca de R$86 milhões. A região ocupada pela agremiação corresponde a 4% do espaço dividido com a corporação. Nos primórdios da história da localidade, o terreno era cedido pelos proprietários da fábrica, que chegavam a incentivar as práticas esportivas, segundo membros mais antigos da comunidade.

No início do século XX, os clubes de várzea chegam para compor a história de São Paulo como espaços de convivência e acolhimento. Os indesejados pela elite de então, reuniam-se para praticar esportes e gozar de momentos de lazer. Juntos, naquele cenário de transformações urbanas na capital paulista, os “varzeanos” desenvolveram novas formas de sociabilidade: a inclusão dos excluídos. O Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1910, foi o primeiro time varzeano a atravessar as fronteiras da segregação entre a várzea e a prática elitista do esporte, ganhando o Campeonato Paulista - organizado pela Liga Paulista de Foot-ball, criada por Charles Miller, em 1914.

O SMAC é um dos clubes esportivos mais antigos em atividade no Brasil. Há mais de 100 anos, a agremiação tem sua história intrinsecamente ligada à da cidade de São Paulo e do futebol brasileiro. Assim como o Corinthians, o Santa Marina Atlético Clube foi fundado pela classe trabalhadora e promoveu mudanças históricas na sociedade ao seu redor. Funcionários da antiga Vidraria Santa Marina e os moradores da vila operária, em 1913, fundaram o que, hoje, é símbolo de resistência do futebol de várzea ante a chegada da especulação imobiliária.

 

Representantes do clube aguardam a chegada dos oficiais e advogados da empresa Saint-Gobain. De frente para a foto, da esquerda para a direita: o advogado Caio Dias, Chiquinho e Rose. Foto por Bianca Abreu.
Representantes do clube aguardam a chegada dos oficiais e advogados da empresa Saint-Gobain. De frente para a foto, da esquerda para a direita: o advogado Caio Dias, Chiquinho e Rose. Foto por Bianca Abreu.

 

Já a Saint-Gobain, outro lado da moeda dessa disputa pelo terreno na Água Branca - bairro da Zona Oeste de São Paulo - chegou na década de 1930 em solo brasileiro. Segundo a empresa, em seu site oficial, “a história do Grupo no Brasil tem sido marcada por novas aquisições, fusões, expansão e conquista de novos mercados”. De acordo com o website, o grupo possui o propósito de “ajudar a construir um mundo mais justo, sustentável, aberto e acolhedor”.

Em nota à Agência Maurício Tragtenberg (AGEMT), quando questionada sobre o compromisso de cuidar das instalações do SMAC - assumidos na reunião - e sobre uma possível compensação aos alunos de futsal que tiveram suas aulas gratuitas suspensas por conta da reintegração, a multinacional afirmou que vai cumprir o acordo. “O acervo do Clube está em segurança junto a um fiel depositário e que será preservado. A empresa aguarda definição das autoridades do município e do Estado de São Paulo quanto ao tombamento do patrimônio cultural e histórico”, diz a nota. E pontua que está realizando estudos para "as possibilidades de uso do terreno”.

Apesar de assumirem aguardar as decisões sobre o tombamento do espaço, não tivemos respostas quando indagamos se há, por parte da organização, entendimento de que o clube promovia ações de acolhimento e justiça social importantes para a comunidade paulistana.  (A nota da Saint-Gobain, na íntegra, está disponível no final desta reportagem)

Em 2007, após investidas por parte da multinacional, o Santa Marina AC assinou um contrato de comodato - empréstimo do terreno - válido por dez anos. Vencido esse prazo, dois processos simultâneos passaram a tramitar na justiça: usucapião (aquisição por tempo de uso) e reintegração de posse (em nome da multinacional).

Em 2021, com ajuda de profissionais do Museu do Futebol, a administração chegou a empacotar os troféus para desocupação do espaço que havia sido determinada pela justiça, mas uma liminar - aos 45 do segundo tempo - suspendeu a ação. Agora, dois anos depois, o mesmo não aconteceu. A deputada Erika Hilton chegou a solicitar a suspensão da reintegração, mas dessa vez, o clube precisou fechar as portas.

 

“É bem triste a ideia de que o juiz entende que preservar esse patrimônio é só preservar o acervo, e não as atividades, que são o principal elo que gerou esse patrimônio”, lamenta Medeiros

Em paralelo aos processos já citados, há um Projeto de Lei, de 2021, que defende o tombamento do Santa Marina Atlético Clube como patrimônio cultural material da cidade de São Paulo. Erika Hilton, autora do PL, não pôde estar presente na data marcada para desocupação; mas sua assessora, Kelseny Medeiros, representou a deputada e comentou sobre o assunto. “A última etapa dessa briga judicial foi a estratégia criada pelos coletivos que acompanham o Santa Marina de mover essa discussão da posse pra questão do patrimônio cultural, porque é um patrimônio cultural. Esse é o valor do Santa Marina”, disse Medeiros sobre a argumentação usada na ação.

“Foi isso que foi construído, junto com a promotoria aqui, do Ministério Público de São Paulo, e levado por meio de uma ação civil-pública pra um novo juiz, pra que ele protegesse esse patrimônio pra além da definição da posse”, completa. Ela acompanha o caso desde 2021, ano em que a deputada Hilton entrou na defesa do clube.

“É um clube que carrega, além de tudo, muita memória, muita história. E, definitivamente, é mais que quadros e troféus, é sobre as pessoas que cuidam e usam dele todos os dias”, explica Medeiros. “Esse patrimônio, ele só existe porque existiam pessoas aqui pra cuidar dele. Pessoas que utilizavam isso aqui, que faziam disso uma segunda casa, uma comunidade mesmo”, finaliza a assessora, enquanto aponta para as fotos que representam a memória preservada no local, que tem sua integridade ameaçada com o despejo.

 

Acervo de fotos e troféus do Santa Marina Atlético Clube. A assessora Kelseny Medeiros, mães, jogadores e outros membros da comunidade SMAC discutem sobre a desocupação. Fotos por Bianca Abreu.

 

Acervo de fotos e troféus do Santa Marina Atlético Clube. A assessora Kelseny Medeiros, mães, jogadores e outros membros da comunidade SMAC discutem sobre a desocupação. Fotos por Bianca Abreu.

 

Acervo de fotos e troféus do Santa Marina Atlético Clube. A assessora Kelseny Medeiros, mães, jogadores e outros membros da comunidade SMAC discutem sobre a desocupação. Fotos por Bianca Abreu.
Acervo de fotos e troféus do Santa Marina Atlético Clube. A assessora Kelseny Medeiros, mães, jogadores e outros membros da comunidade SMAC discutem sobre a desocupação. Fotos por Bianca Abreu.

 

 

            Na conta do Instagram @santamarina.doc é possível conferir o curta-metragem que conta um pouco da história do clube e de sua briga na justiça para que siga resistindo como um dos poucos clubes de várzea centenários do Brasil. 

           A historiadora do esporte Aira Bonfim e o jornalista Juca Kfouri são algumas das personalidades presentes no curta. A conta na rede social também reúne links de reportagens sobre a briga judicial e busca atrair e mobilizar ainda mais defensores da memória afetiva paulistana.

 

Escudo do clube estampado na parede lateral de sua quadra, onde são realizadas as aulas de futsal. Foto por Bianca Abreu
Escudo do clube estampado na parede lateral de sua quadra, onde são realizadas as aulas de futsal. Foto por Bianca Abreu

 

Confira, na íntegra, a nota do Grupo Saint-Gobain à AGEMT:

“A Saint-Gobain sempre esteve disponível e aberta ao diálogo com o Santa Marina Atlético Clube (SMAC) a fim de encontrarem, em comum acordo, a melhor solução para ambas as partes em relação ao imóvel localizado na Avenida Santa Marina, nº 443/833/883, em São Paulo (SP).

Ao longo de todos os anos foram oferecidas várias alternativas, inclusive o uso do imóvel por meio de um contrato de comodato, que acabou por expirar em 2019. E, embora tenha recebido o parecer judicial favorável confirmando a posse do imóvel, e que ainda permitia a retomada do espaço então ocupado pelo SMAC, a Saint-Gobain buscou mais uma vez o diálogo.

Junto ao Ministério Público e às lideranças do Clube, a Saint-Gobain propôs um novo acordo em 2021, que garantiria a permanência do SMAC no local, como tem ocorrido nos últimos anos. Infelizmente os representantes do Clube se mostraram irredutíveis, e declararam que não estão abertos a essa alternativa, demandando outras ações que estão fora do tema em questão.

O processo seguiu seu curso e, no mês de abril de 2023, após vários recursos terem sido rejeitados em diversas instâncias judiciais, o Poder Judiciário determinou o cumprimento da ordem de reintegração da Saint-Gobain na posse à área ocupada pelo SMAC, cumprida no dia 14 de junho de 2023, com anuência e acompanhamento do Ministério Público.

A Saint-Gobain reitera que o acervo do Clube está em segurança junto a um fiel depositário e que será preservado. A empresa aguarda definição das autoridades do município e do Estado de São Paulo quanto ao tombamento do patrimônio cultural e histórico. A Saint-Gobain está realizando estudos para as possibilidades de uso do terreno.

O Grupo Saint-Gobain, que atua há mais de 80 anos no Brasil e trabalha continuamente para o desenvolvimento do setor da construção no país, é pautado nos princípios de responsabilidade social e ambiental, e reitera seu empenho para a melhor solução possível”.