“Do céu para a Terra, da religião à resistência”

por
Alice Di Biase
|
26/09/2024 - 12h

Apesar de contraditório, a Igreja Católica desempenhou um papel fundamental na defesa de democracia durante a Ditadura Civil-Militar de 1964. Por um lado, apoiou os militares num primeiro momento, especialmente a cúpula da Igreja Católica. Por outro, a postura de alguns setores dessa instituição religiosa fora essencial na resistência ao regime autoritário.

A perseguição e tortura sofrida durante o regime, principalmente no período do Ato Institucional 5 (1968 – 1978), período mais extremo da ditadura, colocou em risco a defesa dos direitos humanos. Foi nesta conjuntura que a Igreja Católica assumiu um papel de destaque na luta contra a repressão e a tortura e na defesa dos direitos humanos, transformando-se na mais importante instituição de oposição.

Em primeira análise, pode-se dizer que a participação da Igreja no combate ao regime ditatorial foi tardia, mas faz-se necessário entender os acontecimentos que antecederam o golpe.

No contexto que precedeu o golpe de 64, a Igreja buscava se encaixar diante das mudanças estruturais pela qual a sociedade brasileira passava, o exercício do sacerdócio se enfraquecia diante das futuras gerações, além da perda de fiéis para outras religiões que tomavam força. Para se tornar mais atrativa para os grupos sociais que se distanciavam, a Igreja criou organizações como: a Juventude Operária Católica (JOC), a Ação Católica Operária (ACO), a Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Universitária Católica (JUC) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Esse processo permitiu com que o catolicismo se relacionasse mais diretamente com as pautas sociais em defesa das minorias.

Eulálio Figueira, cientista da Religião pela PUC-SP ressalta a importância de organizações religiosas voltadas à população: “A igreja católica na pessoa do cardeal Arns e alguns bispos progressistas foi fundamental para restabelecer a democracia articulando a sociedade civil. As CEBs, foram espaços democráticos e alternativos que não puderam ser usurpados pelos militares. Estas comunidades foram a base social que plantou alternativas, promoveram verdadeiras escolas de formação de consciência política e cidadã, unindo a mensagem do Evangelho com a prática social solidária”.

No entanto, ao mesmo tempo em que a busca por fiéis colocava o catolicismo mais próximo ao povo, no início do golpe, as figuras da alta cúpula da Igreja Católica defendiam a intervenção militar, por considerarem a política de João Goulart uma ameaça à ordem.

Mas a postura dos membros da alta cúpula, não foi suficiente para interromper a participação da Igreja na luta pela defesa dos direitos humanos. Em realidade, a virada de chave foi quando os casos de tortura vieram à tona, diante desse cenário fez-se necessário usar da voz e da relativa proteção que a religião católica possuía diante dos militares.

O jornal “O São Paulo”, criado em 1956, era o veículo oficial da Arquidiocese de São Paulo. Até os anos anteriores à ascensão do regime autoritário, sua linha editorial consistia na promoção dos valores católicos e informativos para os fiéis. Porém, depois de 64 o jornal mudou sua abordagem e passou a se posicionar contra as censuras e torturas.

Apesar das tentativas do jornal de informar a população sobre os casos de tortura, o jornal lidava com a autocensura na própria redação por D. Agnelo Rossi, arcebispo de São Paulo e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Um exemplo disso foi a divulgação da prisão e morte de Carlo Marighella, morto na emboscada de 4 de novembro de 1969, sua prisão só foi divulgada pelo jornal duas semanas após o ocorrido, em 15 de novembro.

A partir de 1970, sob direção de Dom Paulo Evaristo Arns, a crítica ao regime ditatorial passou a ser mais presente. Sob nova direção as ainda tímidas críticas começaram a ganhar mais espaço no jornal.

"A Igreja-Hierarquia [...] recebeu a vitória do Movimento de Março de 64 com muita esperança e, até, como um acontecimento providencial. Reconhece, diante da evidência dos fatos, tudo que a Revolução conseguiu de bom para o país [...]. Mas, manifesta, também, suas preocupações em alguns pontos como os excessos na repressão, a lentidão da retomada da plenitude democrática, a violação de alguns direitos fundamentais da pessoa, atritos provocados por certas áreas revolucionárias, podem e devem ser superadas, porque assim o exigem a consciência nacional e o maior bem da Pátria.” - O São Paulo, 13 de março de 1971, p. 3.

Arns, ficou conhecido também por liderar a criação da Comissão de Justiça e Paz (1972), que durante o período mais intenso da repressão prestava majoritariamente auxílio material e jurídico às vítimas de tortura e perseguição política. Sua atuação no jornal foi crucial para tornar o veículo de notícias católico o principal crítico às prisões e torturas. Ao se opor de modo cada vez mais firme contra a ditadura, a Igreja atraiu diferentes grupos e setores sociais que também eram vítimas da repressão.

Assim como relata o professor de História Contemporânea do Brasil na PUC-SP, Antônio Rago Filho, a Igreja mudou fortemente o seu posicionamento após os indícios de tortura, e a princípio os militares não souberam como lidar com isso: “Um dia, Arns quis visitar o Presídio do Paraíso, muitos presos políticos eram levados para lá. Havia boatos de que o local era um dos centros de tortura, no entanto, a estrutura havia sido construída de tal forma que não se ouvia os gritos. Então, Arns chegou lá vestido como um sujeito comum e comunicou aos guardas que gostaria de visitar o porão do presídio, claro que seu pedido foi negado. Outro dia, tentou novamente, só que dessa vez se vestiu com batina, uma cruz gigante no pescoço e um báculo (bastão religioso), os guardas ficaram sem reação e o deixaram entrar”.

Segundo o doutor em história, essa narrativa destaca a postura combativa de D. Paulo Evaristo Arns e o poder de influência que a Igreja Católica ainda exercia sobre os militares nesse período. A Igreja, em muitos momentos, parecia quase imune às perseguições do regime, devido à sua força institucional e moral.

É possível notar a postura anti-hegemônica do jornal em suas publicações a partir de 1972, abordando determinados assuntos com a explicitude que poucos veículos eram capazes, mediante a censura. Como é possível ver no trecho a seguir: “[...] há bem viva na consciência de nossa população e muito difundida na opinião pública internacional a convicção de que é relevante a incidência dos casos de tortura no Brasil [...] não é lícito utilizar no interrogatório de pessoas suspeitas, com o fim de obter confissões ou delação de outros, métodos de tortura física, psíquica ou moral, sobretudo quando levados até à mutilação, à quebra da saúde e até à morte, como tem acontecido.” (O São Paulo, 17 de junho de 1972, p. 10)

Eulálio reforça a importância do jornal como veículo combativo: “Também friso que o Jornal O São Paulo, durante o bispado de dom Paulo Evaristo Arns foi a voz de quem não tinha voz na imprensa oficial, e a voz forte de denúncia do Estado militar e de suas atrocidades”.

Mais adiante, o jornal perdeu a relativa liberdade que possuía e passou a ter a presença de um sensor em sua redação. Tudo isso foi notificado pela redação: “Lamentavelmente, como se poderá deduzir até pela situação vivida pelo nosso semanário, nem mesmo a imprensa católica, pela primeira vez em sua história, está encontrando a liberdade para um leal serviço da verdade. Os seus modestos recursos de comunicação encontram-se sob censura e pressões de toda a ordem, sem poder informar e, menos ainda, apreciar, criticamente, os acontecimentos do País.” (O São Paulo, 13 de maio de 1972, p. 3)

Um dos episódios mais marcantes de censura em relação ao jornal “O São Paulo” foi a falsificação de uma edição o semanário. O texto levava o título “Mea Culpa” e consistia em uma suposta retratação da Igreja por sua postura exageradamente crítica em relação à censura do regime. O texto também reforçava a presença de uma ameaça comunista na sociedade brasileira.

 

Manchete "Mea Culpa" com a  a fotografia de Arns
Manchete "Mea Culpa" com a  a fotografia de Arns

 

Semanário de 11 a 17 de setembro de 2024
Semanário de 11 a 17 de setembro de 2024

Atualmente o jornal o São Paulo aborda temas relacionados à Igreja Católica, com notícias divididas entre São Paulo, Brasil, Mundo e Vaticano. O jornal também comenta assuntos atuais, analisando a política, economia e justiça sob uma perspectiva cristã, seus textos incentivam o diálogo entre fé e vida cotidiana. Sem necessidade de ser combativo à censura. Porém, a marca do jornal nos tempos de repressão permanece: “É certo que sempre se poderá dizer que a Igreja deveria ter feito mais no passado e no presente [...], mas todos haverão de convir que amanhã, não se poderá dizer que a Igreja foi omissa. Ao contrário, escrever-se-á que a Igreja, deliberada e conscientemente, renunciou a antigos privilégios, alinhou-se ao lado do povo e propugnou pelos Direitos Humanos, sem temer riscos e incompreensões.” (O São Paulo, 8 de dezembro de 1973, p.3)

 

*Os trechos do jornal utilizados na reportagem foram retirados do acervo da tese “A Atuação da Imprensa Católica durante o governo militar no Brasil” de Newton Leonardo Silva e Vera Chaia”

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