Direito das mulheres

Projetos se organizam para combater a pobreza menstrual em vários pontos do Estado de São Paulo
por
Marcela Rocha
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30/03/2023 - 12h

Perder dias de trabalho, contrair doenças, sentir vergonha do funcionamento do próprio corpo e se isolar durante o período menstrual por péssimas condições de higiene são alguns dos problemas causados pela pobreza menstrual.  As características acima ocorrem com mulheres em situação de vulnerabilidade social. O tema da pobreza menstrual tem ganhado repercussão desde outubro de 2021, quando Jair Bolsonaro vetou a distribuição de absorventes íntimos e outros itens de higiene que seriam direcionados para estudantes de baixa renda matriculadas na rede pública de ensino, mulheres em situação de rua ou em vulnerabilidade social, mulheres egressas e mulheres internadas participantes de programas de medidas socioeducativas. 

O financiamento dessas ações viria do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Fundo Penitenciário Nacional, para o caso de mulheres egressas do sistema penitenciário. O veto e a omissão do Governo atrasaram o combate à pobreza menstrual e forçaram que movimentos envolvidos com as lutas das mulheres tomassem providências para tentar amenizar os danos. Absorventes sempre foram objetos que refletem as diferenças de classe entre as mulheres. O absorvente higiênico feito de algodão e plástico como conhecemos hoje surgiu no país apenas em 1930. Até aquele momento as mulheres usavam pedaços de pano reutilizáveis. Os panos eram lavados, secos e guardados para serem usados novamente no próximo período menstrual. 

Hoje é sabido que a prática não é indicada, pois, os panos abafam a umidade do canal vaginal e potencializam a possibilidade de contrair doenças infecciosas. A inserção de tecidos não esterilizados com os devidos procedimentos assépticos pode causar a mudança do pH vaginal e a proliferação de bactérias. Mesmo quando chegaram ao Brasil, os absorventes higiênicos industrializados não eram acessíveis a todas as mulheres por conta de seu alto preço. Os preços altos permanecem até hoje. O conceito “taxa rosa” foi recentemente criado por economistas para explicar que produtos para meninas e mulheres custam até 7% mais caros. 

O preço exorbitante de produtos ditos femininos combinado com o preconceito de gênero provoca a diferença salarial entre homens em mulheres, resultando em uma sociedade extremamente desigual que condiciona mulheres, sobretudo as de baixa renda, a uma vida indigna, em que um salário pouco paga as contas essenciais, e pouco ou nada sobra para gastos com itens de higiene, como é o caso dos absorventes. 

A situação se agrava quando falamos, por exemplo, de mulheres egressas do sistema penitenciário. O coletivo Por Nós atua em várias cidades do Estado de São Paulo no combate à pobreza menstrual, e foi idealizado por um grupo de mulheres ainda em cumprimento de pena. Atualmente quem direciona as ações são Mary e Iyá Batia Jello, Helen Baum e Débora Antunes. Após o cumprimento da pena a qual foram condicionadas, algumas mulheres voltaram a conversar fora dos muros de concreto que as aprisionavam e perceberam que tinham as mesmas mágoas: a falta de apoio do Estado e das famílias. 

Em prisões masculinas, em dia de visita, a fila é enorme no entorno das penitenciárias. No caso de prisões femininas, o que se observa é o abandono. Essa dupla penalização entre meio afetivo de rede de apoio e o cumprimento da pena, tornam a estadia dessas mulheres uma verdadeira tortura. Elas têm apenas elas mesmas e as colegas que fazem no sistema prisional. As mulheres que compõe e auxiliam o projeto viram no coletivo o apoio que precisavam de si próprias e de seus familiares para conseguir dar o primeiro passo ao processo de ressocialização e retomada da vida pós sistema carcerário. 

Débora Antunes, membro do grupo e atuante na direção do Por Nós, é uma sobrevivente do cárcere. Há 9 anos em liberdade, é mãe de 5 filhos, avó de 4 netas, trabalha como diarista e é formada em educação social pela Falcons University, a universidade da ONG Gerando Falcões, que realiza a capacitação e formação profissional dos alunos em 6 meses buscando realizar o combate à pobreza nas periferias do país. Débora também participa do CUFA (Central Única das Favelas) no complexo Jd. João XXIII, na Zona Oeste da capital, além de integrar o projeto religioso GT Missões com ações principalmente na "Cracolândia". 

De acordo com Débora, o movimento surgiu através da experiência desumana que todas elas compartilharam enquanto estavam em cárcere, como a falta de acesso a produtos de higiene menstrual: “recebíamos um pacote de absorvente por mês, de péssima qualidade e insuficientes para aquelas que tinham fluxo mais intenso. O coletivo hoje busca fortalecer as mulheres egressas e suas famílias, oferecendo informações e organizando ações nas datas das ‘saidinhas’ em algumas unidades penitenciárias do Estado de SP, marcando presença em importantes pautas para a população carcerária”, conta. 

Parafraseando Iyá Batia, outra fundadora, Débora diz que “a menstruação na cadeia mostra como a mulher na prisão é desvalorizada e empobrecida” O coletivo Por Nós hoje conta com 20 participantes atuantes independentes, se mantendo através de doações de absorventes higiênicos, coletores menstruais e doações de valores para compra de itens de higiene menstrual. A principal forma de contato com o movimento para doar e se voluntariar, é através do perfil no Instagram @nos_por_nos. O simples ato de fornecer absorventes higiênicos traz às mulheres egressas o fortalecimento da autoestima e autoconfiança, devolvendo a essas mulheres excluídas a condição humana da vaidade.

Beneficiárias posam em evento de entrega de coletores menstruais em parceria com a LBV. Foram doados 200 coletores. Foto: coletivo Por Nós.
Beneficiárias do projeto posam em evento de entrega de coletores menstruais em parceria com a Legião da Boa Vontade (LBV). Foram doados 200 coletores. Foto: coletivo Por Nós. 

 

A menstruação faz parte do funcionamento saudável do corpo feminino, mas as condições econômicas, culturais e sociais fazem do período menstrual um tabu, um assunto a ser evitado e digno de vergonha. O documentário Absorvendo o Tabu retrata como o constrangimento por menstruar afeta as mulheres indianas de um pequeno povoado. Indicado ao Oscar 2019, o filme demonstra para nós mulheres brasileiras as semelhanças entre as culturas brasileira e indiana. Em ambos em países a presença da pobreza menstrual dificulta a rotina de mulheres, as fazem perder dias de aula e de trabalho, faz com que sejam vistas como sujas e impróprias por menstruar, e são excluídas de atividades durante a menstruação. 

O grande acontecimento do filme ocorre quando uma máquina de produção de absorventes acessíveis foi instalada, transformando a vida das mulheres envolvidas com o projeto. Mais de 40% mulheres indianas não tem acesso a absorventes higiênicos e assim como no Brasil a utilização de panos e outros objetos improvisados ainda é uma realidade. 

Na cidade de São Carlos no interior do Estado de São Paulo, um grupo de combate à pobreza menstrual surgiu quando um coletivo de estudantes da Universidade Federal de São Carlos percebeu a carência de projetos de distribuição de absorventes para mulheres em vulnerabilidade social na cidade. Mariela Salvini, de 25 anos, hoje linguista formada pela UFSCar conta que quando ingressou no projeto Unidas pelas Mulheres com suas colegas tinha pouco conhecimento sobre pobreza menstrual e sobre como executar as ações, mas que concordou em participar por vontade de ajudar mulheres a ter um período menstrual digno e a passar mais informações sobre a saúde da mulher. 

Recebimento de absorventes higiênicos para distribuição. Foto: Unidas pelas Mulheres SC.
Recebimento de absorventes higiênicos para distribuição. Foto: Unidas pelas Mulheres SC. 

 

O projeto é custeado a partir de doações presenciais de absorventes, por PIX, doação de dinheiro e transferência bancária, e já utilizaram também das plataformas de financiamento coletivo Vakinha e Benfeitoria. O Unidas pelas Mulheres aceita também aliados para participar das ações e de projetos de arrecadação de valores. Para entrar em contato com o projeto basta acessar a página oficial no Instagram @unidaspelasmulheres.sc e se informar que deseja doar ou se voluntariar para a causa. 

A sanção da Lei 17.525/2022 está em execução pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) para implementação do programa Dignidade Íntima, que prevê a distribuição de absorventes e outros itens de higiene menstrual para meninas matriculadas nas escolas da rede estadual de ensino, inclusive Etecs e Fatecs. 

A medida merece ser comemorada, pois significa uma tentativa de política pública de proporcionar as alunas melhores condições menstruais. Apesar disso, ainda não é o suficiente para erradicar a pobreza menstrual, pois não abrange meninas que não estão matriculadas em escolas estaduais de São Paulo e exclui outras pessoas que menstruam e que se encontram em situação de vulnerabilidade social. 

É preciso continuar lutando para que todas as pessoas que menstruam tenham acesso não apenas à absorventes, mas a todos os itens de higiene menstrual como coletores, calcinhas absorventes, absorventes internos, lenços umedecidos e o que mais for necessário. É preciso lutar contra a desinformação e mistificação da menstruação para que nossas mulheres, meninas e pessoas que menstruam não sintam nojo ou vergonha em realizar o único sangramento que não vem de uma violência contra o corpo: a menstruação.