Nesta quinta-feira (22), a ex-presidente Dilma Rousseff teve a anistia concedida pela Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Com a decisão, a comissão reconhece que Dilma foi perseguida sistematicamente pelo Estado brasileiro durante o regime autoritário (1964-1985), e oficializou um pedido de desculpas em nome do estado, assim como uma indenização de 100 mil reais.
Criada em 2001, a Comissão de Anistia tem como principal função examinar e julgar pedidos de anistia política relacionados a perseguições ocorridas entre 1946 e 1988. A atuação da comissão se insere em um contexto amplo da justiça de transição, um conjunto de medidas adotadas para lidar com legados de violações de direitos humanos por regimes autoritários, incluindo reparação, memória, verdade e garantia de não repetição. A presidenta da Comissão, Ana Maria Oliveira pontua que “a anistia de 1988 é uma conquista democrática e um direito individual e coletivo em razão da violação dos direitos fundamentais promovida pelo estado autoritário por motivação política, não se trata de um gesto de clemência do estado”.
Em sessão plenária realizada em Brasília, os 21 conselheiros do colegiado aprovaram, por unanimidade, o recurso apresentado por Dilma contra a decisão de 2022, que havia negado o reconhecimento. A presidenta da Comissão de Anistia, Ana Maria Lima de Oliveira, leu a portaria de reconhecimento e, em nome do Estado, pediu desculpas a Dilma “por todas as atrocidades” que lhe foram causadas durante o período ditatorial. Ana Maria agradeceu à anistiada por sua “incansável luta pela democracia brasileira e pelo povo brasileiro” – referindo-se ao apelido “coração valente” pelo qual Dilma ficou conhecida em sua trajetória de resistência. Esse pedido formal de perdão é parte importante do resultado, pois simboliza a reconciliação do Estado com uma cidadã que ele próprio torturou e perseguiu.
A indenização aprovada, de R$100 mil, corresponde ao teto previsto pelas diretrizes atuais da Comissão de Anistia. O relator do caso, conselheiro Rodrigo Lentz, justificou seu voto alegando que a indenização corresponde ao período de 1969 a 1988, totalizando 20 anos de perseguição reconhecidos oficialmente. O cálculo considerou o tempo em que Dilma ficou impedida de trabalhar e estudar devido à repressão. Nos bastidores, sabe-se que o pedido original apresentado por Dilma em 2002 pleiteava uma pensão mensal vitalícia de R$ 10,7 mil, valor equivalente ao salário que ela deixou de receber na Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul, FEE-RS, ao ser forçada a se demitir em 1970. Caso esse benefício retroativo fosse concedido integralmente, a União teria que desembolsar cerca de R$ 2,8 milhões em pagamentos acumulados.
Entretanto, alterações normativas implementadas nos últimos anos estabeleceram limites mais baixos. Atualmente, a reparação máxima para anistiados políticos é justamente de R$ 100 mil em cota única, ou, alternativamente, R$ 2 mil mensais. A comissão também determinou que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) realize uma suspensão do período de afastamento de Dilma do serviço público para fins de aposentadoria, evitando dupla pensão com eventuais reparações já obtidas em outras instâncias.
O caso de Dilma Rousseff já havia tido desdobramentos no Poder Judiciário. Em 2023, a Justiça Federal em Brasília reconheceu que a ex-presidente Dilma Rousseff foi anistiada politicamente, em uma ação movida por ela, e determinou que a União pagasse R$ 400 mil por danos morais. No entanto, a pensão mensal retroativa foi negada, pois seria um benefício a ser tratado em instâncias administrativas.
Além disso, Dilma já havia sido reconhecida como anistiada em nível estadual, recebendo indenizações nos estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo, totalizando cerca de R$ 72 mil. A ex-presidente tem direcionado esses recursos para institutos e projetos sociais, não utilizando o dinheiro para fins pessoais.
A trajetória de Dilma, durante a ditadura, ilustra o perfil das perseguições políticas promovidas durante o regime militar. Após o golpe civil-militar de 1964 e o aprofundamento do autoritarismo, Rousseff ingressou em organizações que se posicionaram contra o regime, como a Política Operária (POLOP), e, posteriormente, a VAR-Palmares. Em 1969, devido à repressão política, ela foi forçada a abandonar seus estudos de Economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e entrar na clandestinidade, prática recorrente entre militantes perseguidos, especialmente após o Ato Institucional número 5, promulgado em 1968.
Em 1970, a ex-presidenta foi capturada pelos militares e submetida a torturas físicas e psicológicas aplicadas por agentes do Estado a serviço de órgãos como a Oban (Operação Bandeirante) e o DOPS. Os métodos empregados incluíam pau de arara, choques elétricos e outros que se enquadram como crimes contra a humanidade. Condenada a mais de seis anos de prisão pelo Superior Tribunal Militar (STM), teve seus direitos políticos suspensos por dez anos. A condenação ocorreu em um contexto de judicialização da repressão, em que o processo legal era sistematicamente ignorado em nome da doutrina de segurança nacional. Em 1972, a pena foi reduzida, mas isso não representou o fim da perseguição, já que ex-presos políticos continuavam a ser vigiados.
A Lei da Anistia, promulgada em 1979 sob pressão de amplos setores da sociedade civil, foi celebrada como marco da transição democrática, pois possibilitou o retorno de exilados e o perdão a perseguidos políticos. No entanto, sua formulação ambígua incluiu também o perdão a agentes do Estado envolvidos em graves violações de direitos humanos, como tortura, desaparecimentos forçados e execuções sumárias. Essa chamada “anistia recíproca” foi fortemente criticada por entidades de direitos humanos por gerar uma assimetria perversa: enquanto as vítimas lutavam por reparação, seus torturadores recebiam o mesmo benefício jurídico, perpetuando um quadro de impunidade institucionalizada.
Dados da Comissão de Anistia e do Ministério da Justiça revelam que, até o final de 2023, pelo menos 4.514 membros das Forças Armadas haviam sido anistiados. Esses números reforçam a dimensão controversa da Lei de 1979 e demonstram como ela foi utilizada para blindar juridicamente os agentes da repressão, dificultando avanços na responsabilização penal e na construção de uma justiça de transição plena.
A Comissão de Anistia, criada pela Lei nº 10.559/2002 e vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, foi uma tentativa de corrigir parte dessa assimetria histórica. Sua função é reconhecer e reparar perseguições políticas mediante comprovação documental e testemunhal, observando critérios técnicos e jurídicos. Contudo, mesmo esse espaço institucional tem sido alvo de disputas ideológicas ao longo dos diferentes governos, o que reflete o quanto a memória da ditadura segue sendo campo de disputa política no Brasil contemporâneo.
O pedido de anistia de Rousseff foi protocolado em 2002, mas por razões éticas e para evitar conflitos de interesse, ela solicitou que o processo fosse suspenso enquanto estivesse em cargos públicos como ministra e presidenta da República. Em 2016, o seu pedido voltou à tramitação, mas em 2022, durante o governo Bolsonaro, o pedido foi negado. Dilma recorreu da decisão, insistindo na reparação e reconhecimento da perseguição e tortura política que sofreu.
Com o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, foi nomeada uma nova composição para a Comissão de Anistia, com o objetivo de restaurar sua função original de justiça. A medida visava neutralizar a politização promovida durante o governo de Jair Bolsonaro, período que a comissão passou a rejeitar sistematicamente pedidos de anistia.
Com a decisão unânime, Dilma Rousseff passa a fazer parte oficialmente da lista de anistiados políticos do Brasil, que inclui milhares de pessoas perseguidas durante a ditadura e reconhecidas pelo Estado brasileiro desde a redemocratização.