Desmatamento, grilagem e devastação dos territórios dos povos originários: como a destinação de terras públicas poderia mudar esse cenário.

Amazônia de Pé, Projeto de Lei de Iniciativa Popular, propõe que florestas públicas não destinadas sejam destinadas a comunidades indígenas, quilombolas e unidades de preservação.
por
Maria Ferreira dos Santos
Malu Araújo
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29/06/2022 - 12h

Sem dúvida, o debate acerca da preservação da Floresta Amazônica ganha cada vez mais notoriedade. Entretanto, ao se tratar de políticas públicas é fundamental que a discussão leve à alguma medida, isto é, que a teoria vire prática. O que nem sempre acontece, uma vez que é necessário que diversos agentes atuem em prol daquilo, entre esses advogados, parlamentares, vereadores, juízes e mais. Mas, e se a mudança viesse de pessoas “comuns”? Pessoas que juntas poderiam ter tanto peso quanto a decisão de um político? 

Essa é a ideia dos Projetos de Lei de Iniciativa Popular (PLIP), previstos pela Constituição Federal. Um exemplo é o Amazônia de Pé. Em seu próprio site, a equipe da campanha declara que acredita “que só um movimento massivo, construído de baixo pra cima, pode dar à Amazônia o cuidado que ela merece”. A proposta da iniciativa é destinar os quase 50 milhões de hectares de florestas públicas na Amazônia para  proteção dos povos indígenas, quilombolas, pequenos produtores extrativistas e Unidades de Conservação, como explicou a socioambientalista e coordenadora de parcerias da iniciativa, Renata Ilha.

Para que o projeto seja aprovado no Congresso é crucial a coleta de um milhão e meio de assinaturas físicas, resultando num processo muito grande visto que esse número representa 1% do eleitorado brasileiro. Todavia, tamanha dimensão não assusta a organização, Karina Penha, coordenadora de mobilização do Amazônia de Pé, reforça que a questão ambiental deve ser preocupação de todos. “O projeto visa exatamente isso: descentralizar para que o Brasil inteiro entenda que a pauta amazônica é importante e fundamental onde quer que você viva, sendo dentro ou fora da região amazônica’’, declarou a ambientalista.

Captura de tela do site do projeto Amazônia de Pé. Reprodução: https://amazoniadepe.org.br/
Captura de tela do site do projeto Amazônia de Pé. Reprodução: https://amazoniadepe.org.br/

Para compreender a importância do projeto na preservação ambiental, Renata explica que "esse território é público, mas não é destinado. E é justamente essa a área de interesse de grilagem”. Grilagem, como citou Ilha, é o termo utilizado para se referir à prática criminosa de se obter ilicitamente a propriedade de terras, normalmente tal ato é feito através do desmatamento e da violência contra os povos ali habitantes.

Esse exercício não é novidade, isso porque há mais de quinhentos anos a história de terras no Brasil vem seguindo esse curso marcado por invasões, exploração de recursos naturais e inanição para uma distribuição igualitária e consciente ambientalmente. Soma-se a isso a implementação de leis que visam, senão outra coisa, a perpetuação dos grandes latifundiários e de um modo de produção insustentável para a terra. Com isso, vem se tornando cada vez mais evidente a ligação que os grandes latifúndios possuem com  os conflitos no campo, com a abertura política para o desmatamento e com a devastação dos povos originários e seus territórios. 

A princípio, é necessário compreender que a concentração de terras e o modo de produção agrícola estão intimamente ligados. O censo Agropecuário em 2017, mostrou que o índice de Gini atingiu a marca de 0,867 pontos, esse índice aponta o nível de desigualdade existente no campo, sendo que quanto mais próximo do 1, maior é a concentração fundiária no país. Atrelado a essa produção, o Censo revela que existem hoje mais de 5 milhões de propriedades agrícolas, das quais 51 mil propriedades, 47,6% são voltadas para produção agropecuária. 

 Com efeito, a expansão do agronegócio tem cobrado cada vez mais caro dos povos tradicionais da terra e das regiões que deveriam ser ambientalmente preservadas. O relatório “Na Fronteira da (I)legalidade: desmatamento e grilagem no Matopiba”, revelou que o Cerrado perdeu mais vegetação nativa nos últimos 20 anos do que nos 500 anos anteriores. Essa devastação ocorre por uma conjuntura diversa, mas que vem se agravando desde 2018, a começar pelo aumento exponencial das ocorrências de violência no campo, o desmatamento crescente no país e o desmonte dos órgãos que deveriam promover a defesa das áreas de preservação e dos povos. Vale dizer, pelas palavras da jornalista Eliane Brum,  não é incompetência e nem descaso, é método.

O relatório anual da Comissão Pastoral da Terra 2021, registrou que o número de ocorrências da violência no campo aumentou quase em cerca de 1 milhão. Em consonância com essa violência, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) apontou que o desmatamento anual de 2019 a 2021 foi 56,6% maior que entre 2016 e 2018 na Amazônia. Além disso, um novo estudo feito pelo IPAM revelou que a invasão de florestas públicas não destinadas impulsiona o desmatamento ilegal e o roubo de terras, pratica conhecida como Grilagem. Um dos indícios da grilagem nas terras públicas é o aumento dos cadastros ambiental rural, conforme o boletim do Serviço Florestal Brasileiro(SFB), nos últimos cinco anos houve um aumento de 232% dos CAR.

 

O desmonte da Funai

 

“Pode usar? Não pode. Mas hoje em dia estamos vivendo uma espécie de estado exceção, onde as normas pouco significam. O ilegal vira legal”. Essas são as palavras da jurista Deborah Duprat, no Dossiê Fundação Anti-indígena: um retrato sob o governo Bolsonaro, ao se referir sobre os mecanismos de corrosão ao órgão da Funai atualmente. O Dossiê faz denúncias aos instrumentos e medidas adotadas pelo governo Bolsonaro desde 2019, para fragilizar e desmontar a Funai.

Um dos primeiros passos para a ruptura das questões indígenas e seu elo com a Justiça foi a passagem do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Ainda nessa linha,  a identificação e delimitação das terras indígenas ficou a cargo da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Outrossim, também houve um corte orçamentário em torno de 40% dos recursos da Funai, limitando ainda mais a atuação dos funcionários.

Como se isso já não fosse o bastante, hoje a Funai já tem nomeado 17 militares, três policiais militares, dois policiais federais e seis profissionais sem vínculo anterior com a administração pública. Além da perseguição aos indigenistas e funcionários, há também a substituição desses servidores, que possuem qualificação e experiência, por profissionais sem experiência alguma com a política indígena. Atualmente, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, é um delegado da Polícia Federal que age em conformidade com os caprichos e vontades do presidente Bolsonaro.

 É preciso dizer: quando o agro vende commodity, ele também vende bioma, quando a Funai começa a ser desmontada, ela também mata os índios e todos aqueles que buscam defender a floresta e seus direitos.