Por fora, a vida de Diego Dias Amaral parecia ter dado um salto. Aos 38 anos, gaúcho, formado em Administração e pai de dois filhos, ele foi promovido recentemente ao cargo de coordenador em uma empresa de varejo. O salário subiu, o status também — mas a nova função chegou com uma condição: abrir um CNPJ e deixar a carteira de trabalho no passado.
Diego nasceu e construiu boa parte da carreira no Rio Grande do Sul. Depois de mais de dez anos na mesma empresa, percebeu que, para crescer de verdade, teria de se mudar para São Paulo — o centro das oportunidades e também da exigência constante. Desde então vive na capital paulista, enquanto os filhos continuam no Sul com a mãe. Ele viaja quase todo final de semana para visitá-los.
Dois meses depois da promoção, ainda tenta entender se ganhou liberdade ou apenas um novo tipo de rotina. Desde a mudança de cargo, ele chega ao escritório às oito da manhã e raramente sai antes das oito da noite. Muitas vezes continua trabalhando em casa, entre planilhas abertas no notebook e desenhos coloridos dos filhos presos na parede.
Para exibir uma visão mais ampla, a AGEMT também conversou com Marcelo Dias Amaral, irmão mais velho de Diego, servidor público e defensor da estabilidade, e Josiane Costa Almeida, colaboradora da equipe de Diego, que continua registrada pela CLT. Juntos, eles ajudam a compor o retrato de um país em transformação — entre o desejo de segurança e o discurso de autonomia.
O discurso corporativo é o da autonomia: “você faz o seu horário, é dono do próprio tempo”. Na prática, porém, o expediente parece mais longo e a cobrança, mais constante.

Foto: Larissa Pereira/AGEMT
Diego Dias Amaral – “Na teoria, eu seria dono do meu tempo. Na prática, sou o tempo todo da empresa.”
Como foi receber a proposta de promoção e a exigência de virar PJ?
Foi um momento de alegria. Eu vinha buscando esse reconhecimento fazia tempo. Quando o gestor me chamou para conversar, imaginei que era uma boa notícia — e era. Mas veio com a condição de abrir um CNPJ. No começo, achei que fazia sentido. Hoje o mercado é assim, principalmente pra cargos de gestão. Eu pensei: “se é o preço pra crescer, eu pago”. E não acho que seja algo ruim. Só que a gente demora um pouco pra entender as implicações.
Você já estava em São Paulo nessa época?
Sim, eu vim pra cá antes da promoção. Foram mais de dez anos na mesma empresa no Rio Grande do Sul. Chegou um momento em que percebi que, se quisesse buscar novas oportunidades, precisava estar onde as coisas acontecem. São Paulo é o centro de tudo, mas também é uma cidade que engole a gente. Aqui o ritmo é outro. Eu sabia que vir pra cá significaria ficar longe das crianças, e ainda assim achei que valia o risco.
O que mudou na rotina depois da promoção?
Mudou quase tudo. O ritmo ficou mais intenso. Chego às oito, saio às oito, e ainda levo o notebook pra casa. No fim do dia, quando os meninos me mandam foto do dever de casa, sinto que poderia estar lá ajudando. Essa é a parte mais difícil. Eu me acostumei a organizar as viagens pro Sul no fim de semana, mas no fundo queria poder passar mais tempo com eles durante a semana também.
No papel, o PJ é livre pra isso — pra ajustar o horário, escolher os dias, trabalhar de onde quiser. Mas na prática, se eu fico desconectado, tudo se acumula. E quando volto, tem sempre uma reunião nova, um projeto em atraso. É como se o tempo nunca parasse.
Marcelo Dias Amaral – “O Diego acha que é livre. Eu acho que vive em outra prisão.”
Você enxerga diferença entre a sua estabilidade e a vida do seu irmão?
Total. Eu sou servidor público, tenho 44 anos e dois filhos. Sei quanto vou ganhar no fim do mês e sei que não posso ser mandado embora de um dia para o outro. Isso me dá tranquilidade. O Diego vive numa gangorra: ganha mais, mas sem garantia nenhuma. Se a empresa mudar de ideia, acabou.
E como você vê o modelo PJ?
Eu entendo o argumento da autonomia. Na teoria, ser seu próprio chefe é o ideal. Mas, na prática, quase ninguém é dono de nada. O patrão continua existindo — só mudou de nome. O funcionário paga os próprios encargos e ainda precisa agradecer pela chance.
Você acha que é uma questão política também?
Com certeza. É o resultado de uma lógica que diz que o trabalhador precisa se virar sozinho. Essa ideia do “empreendedor de si mesmo” virou moda e é muito sedutora. Só que ela desobriga a empresa e o Estado de qualquer responsabilidade. Eu não trocaria minha estabilidade por isso.
O que você diz pro Diego?
Que ele se cuide. Que aproveite o que conquistou, mas não se iluda. A empresa fala em parceria, mas parceria de verdade exige igualdade — e não existe igualdade quando um lado pode te desligar com um e-mail.
Josiane Costa Almeida – “Eu gosto dos meus direitos, mas entendo que os cargos altos vão pelo caminho do PJ.”
Você trabalha diretamente com o Diego. Como ele é como gestor?
Muito presente. Sempre foi o primeiro a chegar e o último a sair. Exigente, mas justo. Quando virou coordenador, o ritmo dele aumentou e o nosso também. Ele tenta proteger a equipe, mas dá pra ver que está sobrecarregado.
E sobre o modelo PJ, como você vê essa mudança dentro da empresa?
Acho que é o rumo das coisas. Entendo que, em cargos muito altos, a empresa vai por esse caminho. Mas, pessoalmente, gosto muito de ser CLT. Tenho meus direitos garantidos: férias certas, décimo terceiro, FGTS… Isso traz um final de mês mais tranquilo.
Você sente que há pressão pra mudar de regime?
Não chega a ser pressão explícita. É mais uma adaptação silenciosa. Quem quer crescer entende que pode ser necessário. Meu cuidado é que nem todo mundo está preparado para viver nessa correria nem tem a estrutura que o Diego tem pra lidar com isso.
Diego Dias Amaral – “O modelo não é o vilão. Só precisa de respeito dos dois lados.”
Você sente que tem mais autonomia agora?
De certa forma, sim. Hoje posso negociar meu ritmo, discutir metas de forma mais direta. Isso é ganho. Mas a autonomia de verdade seria poder usar essa flexibilidade sem culpa. Às vezes penso que o modelo é bom, só não é aplicado como deveria. Se houvesse um olhar mais humano para quem é PJ, com espaço para adaptar horários, a coisa funcionaria melhor.
E quanto aos benefícios?
Eu ainda tenho plano de saúde e alguns auxílios — sei que não é comum. Então reconheço que tive sorte. É uma abertura da empresa, e sou grato. Mas também sei que é exceção. A maioria das empresas não faz essa ponte entre CLT e PJ: simplesmente te joga de um lado para o outro.
Você se arrepende da mudança?
Não — de jeito nenhum. Eu gosto do que faço e da posição que conquistei. Ser PJ não é o problema — o problema é o sistema que trata isso como se fosse informalidade disfarçada. O modelo pode ser positivo se houver responsabilidade dos dois lados. O que me incomoda é a diferença entre o discurso e a realidade.
E como você concilia com a vida pessoal?
Tento com equilíbrio — ou tentando. Tenho o costume de fechar o computador quando chego em casa, mas nem sempre consigo. Às vezes, estou respondendo e-mails enquanto vejo um desenho que os meus filhos fizeram pra mim. É bonito, mas é um lembrete do que falta.
Você acredita que esse é o futuro do trabalho?
Acho que sim. E acho que não é ruim — o problema é a falta de preparo das empresas para isso. O modelo PJ não é vilão. É a resposta ao mundo de hoje. Só que, se não vier acompanhado de respeito, vira disfarce de liberdade. E ninguém aguenta fingir que é livre quando, no fundo, continua preso a um sistema.

Foto: Larissa Pereira/AGEMT
A política por trás da pejotização
O caso dos irmãos Amaral sintetiza um país dividido entre a promessa de autonomia e o desejo de segurança. Diego, o coordenador que virou empresa, tenta equilibrar a carreira com a vida de pai ausente durante a semana. Marcelo, o servidor estável, observa o movimento de fora, convencido de que a “liberdade” vendida pelo mercado tem preço alto.
Nos últimos anos, o Brasil viveu uma reconfiguração das relações de trabalho. A reforma trabalhista de 2017, durante o governo Michel Temer, flexibilizou regras de contratação e abriu espaço para acordos individuais. Desde então, o número de profissionais que atuam como pessoa jurídica (PJ) ou autônomos formais cresceu de modo acelerado.
Segundo dados da PNAD Contínua (IBGE, 2024), cerca de 13,2 milhões de brasileiros trabalham por conta própria com CNPJ — o maior número da série histórica. Já o Dieese aponta que, em dez anos, houve um aumento de mais de 60%nas contratações sem vínculo formal direto, especialmente em áreas administrativas, tecnológicas e de serviços.
Essa transição foi apresentada como sinal de “modernização” e “liberdade”. Para muitos, inclusive Diego, ela de fato oferece vantagens: remunerações mais altas, poder de negociação e prestígio profissional. Mas, na prática, também impõe custos pessoais — responsabilidade por encargos, incerteza e ausência de limites claros entre o trabalho e a vida.
“O bom de ser PJ é poder trabalhar a hora que quiser”, ele diz, rindo. “O problema é que eu trabalho o tempo todo.”
Entre a liberdade prometida e o controle disfarçado, Diego aprendeu a negociar — não apenas contratos, mas também a própria ideia de sucesso.