Por Marina Laurentino
Domingo, 10 de Abril de 2022. Faz um dia ensolarado e me encontro em um ônibus com destino ao Terminal Jardim Ângela. Vou ao encontro do jovem Luís que é organizador da Batalha do Bambuzal. Chego cedo para ver como é a organização da batalha de rima, ela acontece em uma praça escondida próxima ao terminal de ônibus, não é muito fácil de achar, mas os frequentadores já conhecem o caminho de cabeça.
Já havia frequentado algumas batalhas naquela praça nos anos de 2017 e 2018, mas por falta de estrutura a batalha foi cancelada por um tempo. Nesse dia ensolarado foi o retorno da batalha, após 4 anos, ela estava de volta, e com um número considerável de rappers para batalhar. Há uma ansiedade nítida no olhar dos organizadores, pois há muito tempo não retornavam à praça do bambuzal. Luís relata que sempre houveram inúmeras dificuldades em organizar a batalha sem ajuda financeira, contam apenas com o apoio do bar localizado em frente ao local. A falta de estrutura é nítida, os equipamentos e a iluminação só ocorrem pois há um "gato" na fiação, puxando energia do comércio em frente, mas a empolgação da organização é algo contagiante.
Converso com os artistas que irão batalhar e que estão em êxtase, todos animados por fazer parte de algo tão grande, apesar de não serem remunerados pela apresentação. Alguns se sentem à vontade para me contar das dificuldades de ser um artista independente, me dizem que não há muito espaço para essas apresentações em grandes shows ou eventos no centro, há apenas a marginalização imposta pela sociedade.
Quando os frequentadores começam a chegar, a música já começa a tocar, iniciam o setlist com o beat de um clássico na periferia: Negro Drama do Racionais MC's. As pessoas se animam, compram bebidas e vão se espalhando na pequena praça ao lado da quadra. Há crianças pintando muros e correndo ao redor, é um dos ambientes mais amigáveis que já estive, todos se tratam como se fossem uma grande família. A batalha começa e todos se reúnem em volta dos artistas, o público reage às rimas com gritos e aplausos. São10 rappers disputando por lugares na grande final. No fim o ganhador nada leva, apenas a experiência de batalhar naquele lugar. Percebo que os jovens transbordam de orgulho de suas raízes, se orgulham de vir da periferia e ter as vivências que têm. Volto para casa com o coração quente após uma troca de energias boas com aquelas pessoas, a batalha foi um sucesso, houve um bom público, a revitalização dos grafites da praça e o principal, houve uma experiência espetacular para todos que ali estavam.
A partir dos anos 90, houve um “boom” do movimento hip-hop, a arte periférica ficou em destaque e começou a ser vista por muitos jovens como algo para se orgulhar. Esse foi um grande motivo para que surgisse o interesse de jovens de classe média e alta pela “estética periférica” e a “estética preta” onde se apropriam da moda e fala periférica mas nunca sequer pisaram em uma favela. Com música dos Racionais MC 's ganhando grande espaço, a zona sul de São Paulo passou a ser muito comentada e despertou curiosidade em quem não a conhecia. Isso aumentou a vaidade de quem lá vivia, pois todo o país tomou conhecimento da sua quebrada. Principalmente pela música "Da Ponte prá Cá" que virou um grande hino para as pessoas que residem no extremo sul.
Apesar de tudo isso é possível perceber que a Cultura Periférica ainda encontra dificuldades em se expandir nas áreas centrais da cidade e de se fortalecer na sua própria região. E com isso entra em um grande dilema, vale mais a pena investir em eventos dentro da periferia ou levar a cultura periférica para o centro?
Os eventos relacionados ao Rap, Funk e Hip-hop são os mais procurados entre os jovens da periferia. Os mais procurados são os saraus, batalhas de rima, shows, bailes e exposições. Quando conversei com os frequentadores da Batalha do Bambuzal, vi a mesma animação que vi nos organizadores e artistas, é como se todos compartilhassem do mesmo sentimento. Perguntei se eles percebiam a diferença estrutural do evento em comparação aos eventos do centro e a resposta é muito semelhante. Todos falam o que já é sabido, muitos eventos dentro da periferia não tem estrutura alguma. Há uma diferença nítida de investimento, muitos deles são cancelados por não terem apoio algum da prefeitura, e a maioria ocorre de forma independente sem nenhuma ajuda financeira.
Enquanto muitos veem que a centralização dos eventos é algo que expande mais o movimento e entrega para mais pessoas, há uma grande argumentação de que as pessoas que frequentam eventos no centro não são o público alvo e nem são tocados por uma realidade tão distante da sua. Em contrapartida, ao se fechar em uma bolha você acaba se auto limitando a não crescer, a nossa arte acaba presa em um ambiente que, infelizmente, ainda não é bem visto aos olhos da sociedade.
Terça-feira, 12 de abril de 2022. Agora me encontro indo para outro terminal, estou indo para não muito longe do meu destino anterior, vou até a Casa de Cultura do Campo Limpo, sei que vou encontrar outra coisa em termos de estrutura, mas sei que ainda assim é um espaço onde as pessoas periféricas devem ocupar. Ao chegar a primeira coisa que reparo é que é um local muito bem localizado, atrás de uma praça bem movimentada, ao lado de escolas e próximo a bibliotecas. O CCCP é um local muito bonito, com muitos grafites e lambes. A criação das Casas de Cultura foi um grande avanço para a comunidade, já que proporcionam espaços de eventos culturais já existentes do território e essa arte já existe independentemente do poder público. Me chama atenção um palco montado no local, fazem testes de áudio que dá para ouvir do outro lado da rua.
Encontro com o Jovem Monitor Leonardo e a Gestora Cultural Fernanda, que me apresentam o local. Enquanto faço o reconhecimento do território eles me falam com entusiasmo dos projetos que organizam, dizem que o mês do hip-hop animou muito o local. Apesar da receptividade, vejo uma nítida diferença entre o CCCP e a Batalha do Bambuzal, um tom mais sério, mais distante do público. Leonardo que foi nascido e criado no Capão Redondo, conta que cresceu vendo a violência em seu lado mas ainda assim nunca deixou de acreditar que a arte era a melhor forma para expressar seus sentimentos, ele, além de jovem monitor, é poeta e já participou da organização de um cursinho popular no Capão Redondo. Segundo ele "Educar e mudar a vida das pessoas é minha vida", nele vejo o olhar jovem e sonhador com esperança de transformar o mundo.
Em Fernanda, o mesmo olhar (apesar de ser mais velha que Leonardo) percebo que ainda há um entusiasmo como se fosse jovem. No dia de minha visita não havia muita movimentação, era fim de tarde de uma terça-feira e se preparavam para um grande evento no final de semana. Há um discurso mais "ensaiado", Fernanda sabe se portar e falar com propriedade sobre Cultura Periférica, age como se estivesse dando uma aula, postura diferente de Leonardo e Luís, que falam de igual para igual, como se fossemos amigos e estivermos conversando na mesa de um bar.
A criação das Casas de Cultura foi um grande avanço para a comunidade, já que proporcionam espaços de eventos culturais já existentes do território e essa arte já existe independentemente do poder público. Fernanda ressalta o tempo todo que a Casa de Cultura do Campo Limpo busca realçar a cultura periférica e busca trazer artistas da periferia que dialoguem diretamente com o público. A curadoria é feita de dentro da periferia para dentro da periferia, visando sempre trazer artistas que se encaixem na realidade do território.
Sábado, 16 de Abril de 2022. Me encontro novamente indo ao Centro Cultural do Campo Limpo, mas dessa vez é para um grande show que irá ocorrer. Chego por volta das 18h, ainda está vazio mas já há umas pessoas na frente da grade, o show não é exatamente no CCCP, é na Praça do Campo Limpo em frente ao Centro Cultural. O show será da cantora Urias, e pelos comentários nas redes terá um grande público. As pessoas que ali esperam estão extremamente ansiosas, o CCCP nunca trouxe um show desse tamanho, a ansiedade é nítida de todos os lados. Urias encanta em cada detalhe de sua apresentação, todos a olham hipnotizados. Todo mundo se sente acolhido, uma cantora tão promissora em um show gratuito no extremo sul é algo que impressiona a todos.
Ao finalizar mais um dia acompanhando um evento na periferia me recordo de uma frase que Fernanda, a Gestora Cultural do CCCP me falou em nosso primeiro encontro: "Quero mostrar para as pessoas da região que não precisamos ir da ponte para lá para acharmos cultura". E é exatamente isso que vejo, na periferia há uma pluralidade única que deve ser preservada e é algo para se ter orgulho.
Fica claro que as ações culturais no centro não são um problema em si, mas sim a falta de financiamento de longo prazo para as ações culturais da periferia. As pessoas preferem estar em ações locais, mas a falta de distribuição de verba igualitária faz com que se possa realizar menos ações na periferia. A cultura é um direito para todos e deve envolver o governo, pois deve o direito de acesso à cultura para a população periférica, unindo as tradições populares, o fazer comunitário, os grupos culturais e educadores na perspectiva integrada da Arte, Cultura e Educação. Hoje vemos um território que um dia ficou famoso pela sua violência, sendo um dos maiores polos da efervescência cultural da cidade de São Paulo.