Cultura Ballroom celebra pluralidades

A cena "está criando realidades do futuro", defende Flip Couto, performer e curador
por
Cecília Schwengber Leite
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14/06/2024 - 12h

 

No mês do orgulho LGBTQIAP+, diversas expressões artísticas e políticas da comunidade são celebradas, entre elas, a Cultura Ballroom. "Acredito que é uma cultura que está criando realidades do futuro, pois ela construiu a possibilidade de essas pessoas contarem suas histórias e estruturarem suas vidas e carreiras profissionais. É uma manifestação da presença", afirma Flip Couto - performer, curador, produtor de eventos e palestrante sobre negritudes, diversidade de gênero, saúde e a crise da Aids. 

 

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Reprodução/Instagram

 

Nascido na zona leste de São Paulo, Flip iniciou sua trajetória artística no hip hop, com a dança, e depois se abriu a outras manifestações culturais do movimento. Além de performar, o artista também passou a produzir eventos e, durante esse período, conta que "se permitiu aflorar sua sexualidade", assumindo-se gay. “Nesse processo fui pouco a pouco colocando minha identidade como pessoa LGBT+, primeiramente de forma solitária, e depois me unindo a mais pessoas da comunidade por meio das danças urbanas, quando comecei a me inserir na cultura Ballroom”, diz. Desde então, Flip passou a articular suas primeiras festas e, em 2017, produziu sua primeira ball. 

Origens da Cultura Ballroom

Com seu berço no bairro Harlem, em Nova Iorque, as Ballrooms surgem de um movimento cultural substancialmente negro - e com muitos de seus líderes sendo da comunidade LGBTQIAP+ - hoje conhecido como Harlem Renaissence. Nesse contexto, após um concurso de beleza protagonizado por drag queens e pessoas trans, nos quais, na década de 1960, eram reproduzidos comportamentos racistas, Crystal Labeija, drag queen e mulher trans negra, se revoltou contra os padrões estabelecidos. Assim, fundou a primeira house, a “House of LaBeija”, e a partir dela, diversas houses se expandiram por Harlem, entre outros bairros de Nova Iorque.

No Brasil, a primeira ball ocorreu em Belo Horizonte, a Vogue Fever, trazendo artistas da cena internacional; enquanto uma das houses pioneiras no país, a House Of Hands Up, surgiu de um grupo de danças urbanas, em 2011. Em São Paulo, a cultura Ballroom se estabeleceu por meio da House Of Zion, que compõe a cena mainstream, mais tradicional e precursora. Posteriormente, surge a cena kiki, inicialmente como uma forma de inserção de jovens por meio de ações de saúde, mas que atualmente está mais forte que a cena mainstream, e relacionada a maiores possibilidades de criação.

Flip explica que a estrutura e fundamentos das Ballrooms foram criados por pessoas trans, pretas, latinas, periféricas, profissionais do sexo e portadores de HIV. “É importante definir a Ballroom como uma cultura criada a partir da ausência do Estado, da família e da sociedade estruturalmente cis, branca e heteronormativa, como resposta a todas as violências, construindo um espaço seguro de resistência para esses corpos vulnerabilizados, e buscando outras formas de beleza ", afirma Couto. E acrescenta, “mas para mim é mais do que tudo um espaço de celebração e de encontro, um espaço político também, que constrói novas perspectivas”. 

Houses e Balls

As houses são coletivos que buscam se assemelhar à estrutura de uma família, tanto em termos de afeto e acolhimento, quanto em sua hierarquia, sendo lideradas por mothers e fathers. Comumente expulsos de suas casas, jovens LGBTQIAP+ e portadores de HIV muitas vezes encontram abrigo e pertencimento nas Ballrooms. Ao integrarem uma house, os filhos herdam o sobrenome escolhido pelas mothers ou fathers. Assim, são estabelecidas as identidades e legados da cultura. “É a mesma importância que a família tem na vida de qualquer jovem ou adulto, é dar amor, carinho, cuidar e mentorear também”, diz Flip.

Nas houses, os filhos contam com mentoria de carreiras profissionais dentro das artes, tecnologia, finanças ou qualquer outra área de interesse, além de obterem referências e conhecimento sobre os processos de transição, dicas de moda e beleza e encaminhamento para profissionais da saúde (mental, física e sexual). “As houses têm essa função de fato, são famílias que estão preparadas e dispostas a acolher esses corpos que muitas vezes foram excluídos por suas famílias de sangue”, explica Couto. 

As balls, por sua vez, são bailes onde as famílias se encontram. O intuito é a diversão, livre expressão e acolhimento de corpos marginalizados, e por isso, são políticas em sua essência. Nelas se desenvolvem os elementos da cultura: as categorias de dança, caracterização e performance, com temas estabelecidos e no formato de batalhas. O vencedor de cada categoria leva um Grand Prize (prêmio entregue ao vencedor(a), que também é direcionado a sua house). Através das vitórias, houses e participantes desenvolvem sua reputação e legado.

Vogue

O voguing é uma performance de empoderamento e resistência com movimentações inspiradas nas poses de modelos da famosa revista Vogue. A dança surgiu por meio de pessoas LGBTQIAP+ que, na época, eram presas por serem da comunidade, e que nos presídios tinham fácil acesso a revistas de moda, consideradas “sem conteúdo”. Como um dos únicos meios de distração, essas pessoas reproduziam as poses das mulheres brancas das revistas e almejavam alcançar aquele status fora dos presídios. 

Assim, as Ballrooms incorporaram a performance voguing em forma de batalhas, inicialmente com a reprodução de poses de acordo com o beat, o chamado Posing. Com o passar do tempo e novas pessoas agregando a cena, os estilos foram se desenvolvendo e hoje o voguing divide-se em três principais categorias:

- Old Way, modalidade cujo foco são as linhas e simetrias, como nas páginas da revista;
- New Way, com foco na flexibilidade e agilidade, inspirado em movimentos ginásticos;
- Vogue Femme, criado pelas Femme Queens da cena, traz a feminilidade, acrobacias, sensualidade e energia.

 

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Quinta edição da Ball Vera Verão na Casa Natura Musical, em São Paulo
Imagem: UOL/Felipe Inácio