¨Não é só colocar dois pretos no elenco, ou fazer uma produção somente com gente preta, isso não é representatividade¨, diz Mariana Sena, atriz formada em artes dramáticas pela USP, em relação ao espaço dos negros no cinema brasileiro. No Brasil 54% da população é composta por negros, porém, eles são pouco e mal representados em diversas áreas. O cinema é uma delas: apenas 13,3% do elenco são pretos, ao contrário de homens brancos que são maioria quando se trata de diretores (75,4%) e produtores (59,9%) . Já as mulheres negras não aparecem nem como diretoras ou roteiristas, geralmente elas estão na lista de produção-executiva, segundo dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine).
Criado em 2019 o grupo Nicho 54, por Fernanda Lomba, produtora executiva; Heitor Augusto, crítico e curador; e Raul Perez, roteirista e executivo de comunicação, tem segundo Lomba, em entrevista via e-mail, como objetivo “atuar na formação de profissionais negros do audiovisual, incentivando a estruturação de carreiras de pessoas negras em posições de liderança criativa, intelectual e econômica”. Para a produtora, contudo, seu objetivo não é propagar o óbvio "temos um audiovisual racista", mas " partir dessa constatação para propor meios efetivos dos profissionais negros serem respeitados, reconhecidos e valorizados neste mercado”.
O posicionamento crítico está já no nome do projeto, criado a partir dos dados da população brasileira. “O nome do Instituto apresenta a contradição presente no audiovisual brasileiro que é a forma como lidamos com narrativas negras na perspectiva de "nicho de mercado", enquanto o potencial de representação é de 54% da população”. A partir dessa constatação surgiu o nome Nicho 54, juntando dois fatos do meio audiovisual brasileiro.
“Alinhado com nosso vocabulário, talvez a dica seria trocar o verbo 'sonhar'. É importante saber que é uma jornada longa, com passos construídos no cotidiano e que muitas vezes vai ser preciso consertar o pneu com o carro em movimento, lidando com percalços específicos da área cultural em um país que desestimula e até criminaliza a produção cultural, como vemos agora de maneira gritante. Sendo pessoa preta, destacamos a importância de encontrar seus pares ao longo da jornada”, conta Lomba para negros e negras que buscam trabalhar no audiovisual.
Nesse cenário se destaca Mariana Sena, que em 2020 vem ganhando destaque com os papéis de Carla, de extrema importância para a série "Spectros" da Netflix e de Gilda, cantora e um dos pares românticos de Paulo (Emílio Dantas) em "Todas as mulheres do mundo" do Globoplay. Em entrevista pelo Instagram, ela comentou sobre sua carreira e a dificuldade do negro no audiovisual. "Levei quatro anos para entrar no mercado, pois somente há pouco tempo diretores e produtores de elenco, começaram a se interessar por pessoas pretas para compor um elenco". A demora segundo a atriz poderia ter sido ainda maior se não tivesse contado com uma agente.
Porém para Sena não basta somente haver atores negros nos filmes, tem que se entender o que significa representatividade:
"Achamos que é só um número a mais de negros em um projeto, quando na verdade tem que entender quais são os papéis que esses atores pretos desempenham. Se é o papel que estamos acostumados a ver socialmente a negritude, nesse lugar de marginalização, ou se é um papel que realmente levanta a discussão racial, um novo posicionamento e discute inclusive a dificuldade da inserção do negro no mercado de trabalho.”
Ela comenta ainda que o futuro do audiovisual não está somente na contratação de atores negros: "O audiovisual e a mídia vão mudar a partir do momento que existirem pessoas pretas não só como atores, mas também produtores, galera da maquiagem e diretores, esses que precisam encabeçar projetos que se preocupem de fato com o real significado de representatividade, não só em ocupar um espaço, sim discutir as questões e problemáticas.”
Sobre seu papel nas séries do Globoplay e Netflix, ela destaca a sensação de ter conquistado seu espaço em duas das maiores streamings de filmes em solo nacional. No entanto, não esconde a dificuldade de ser uma mulher preta no meio. "Ser uma atriz preta e estar nessas produções quando as pessoas que estão chefiando não têm consciência do que é você como um corpo preto, então tem todo um cuidado meu mesmo como atriz de tentar inserir inclusive para os diretores, pontos de vistas um pouco mais críticos sobre o que eles estão produzindo".
A dificuldade, segundo ela, "é dialogar com os diretores para abrir e incutir neles uma visão e um interesse de serem um pouco mais críticos com minha imagem, pois meu corpo significa muito".
A atriz ainda aborda os problemas tem atuar com um corpo "padrão". "Só de eu ser uma mulher preta já tem um grande significado e é mais uma dificuldade eu ser uma mulher preta em um corpo padrão, então para eles é muito fácil me jogar no papel da sedutora, porque tenho "bundinha" e “barriguinha chapada”, não é só por esse ser meu corpo que é isso que define como trabalho", diz.
Em relação ao audiovisual em geral, ela acredita que o que falta são oportunidades e frisa novamente sobre a representatividade. "O que falta são essas pessoas pretas que estão lá desempenhando papéis terem a oportunidade de discutir racismo e sua presença. E não é que faltem diretores, diretoras e atores pretos de qualidade, mas sim oportunidades para entrarem no mercado e serem contratadas."
Parafraseando o que Viola Davis disse no Emmy ela conclui: "A única coisa que diferencia as mulheres negras de qualquer outra é a oportunidade."