por Laura Pancini
Imagem do filme “Histórias Cruzadas”, que conta vida de domésticas negras nos anos 60. (Foto: Carta Capital)
Cento e vinte quilômetros. Era essa a distância que uma empregada doméstica de 63 anos tinha que percorrer até o seu trabalho semanalmente. Apesar da idade e de ter diabetes e hipertensão, sua condição financeira a obrigava a continuar trabalhando na casa de uma família no Alto Leblon. Isso até o dia 17 de março. A mulher, que não teve seu nome divulgado, teve a primeira morte por coronavírus no Rio de Janeiro. Os primeiros sintomas surgiram no dia anterior e a trabalhadora foi levada ao hospital, mas não resistiu à falta de ar. Seu contato com o vírus se deu por meio de sua patroa, que havia acabado de voltar da Itália.
Esse caso de transmissão local (quando alguém contaminado no exterior passa o vírus adiante) mostrou um risco gigantesco para quem é empregado doméstico no Brasil. Segundo o IBGE, trabalhadores domésticos representam 6,3 milhões de empregados no país. Desse número, 2,5 milhões são diaristas e só 1,5 milhão trabalham com carteira assinada. A estimativa é que de 15% a 20% sejam maiores de 60 anos: ou seja, um quinto da categoria está inserido no grupo de risco da Covid-19.
O Ministério da Economia anunciou acesso ao seguro-desemprego para quem teve redução de jornada e salário ou contrato suspenso, mas essa medida se limita a trabalhadores com carteira assinada. Apesar de o titular da pasta, Paulo Guedes, ter afirmado, em entrevista para o jornal O Globo, que “ninguém será deixado para trás”, sua medida protege apenas 28,4% dos 6,3 milhões de domésticos no Brasil — os outros 71,6% não são formalizados e dependem do próprio empregador para saber o futuro da sua renda.
Essa é a realidade da diarista Fernanda Moraes, 33, que está com a renda estagnada por conta da crise do coronavírus. Ela trabalha em duas casas e foi liberada por ambas. Uma de suas patroas a auxiliou com um total de R$ 300 nas primeiras três semanas da quarentena, mas logo depois interrompeu o contato e os pagamentos. A outra empregadora, uma senhora de 80 anos, não disse nada depois de dispensá-la.
Com o aluguel e as contas atrasadas, Fernanda está à espera do auxílio emergencial do governo, que oferece R$ 600 para pessoas que se encontram em situações como a dela, mas o tempo é crítico em momentos como esse. “Por aqui onde eu moro, em Itapecerica da Serra, não está tendo nenhum tipo de doação”, ela conta. “Tento ir ao mercado uma vez por semana, mas os itens da cesta básica estão cada dia mais caros.”
Fernanda ainda tenta ajudar sua mãe e seus três filhos que moram com o pai, mas, sem um trabalho fixo, ela não está conseguindo acudir a família. “Como sou diarista, não sou registrada. A crise me fez perceber o quanto isso faz falta”, ela comenta. Agora, ela tenta se manter com alguns “bicos” feitos pelo marido e a ajuda de amigos. Acima de tudo, tenta se manter positiva: “Mesmo com dificuldades, estamos dando um jeito”.
O Ministério Público do Trabalho (MPT), em uma nota técnica, orientou a dispensa dos domésticos e diaristas, com a continuidade do pagamento dos salários, e sugeriu que a negociação fosse feita entre o trabalhador e o patrão. Tal dinâmica soa simples no papel, mas acaba sendo injusta para o empregado. Em sua nota, o MPT comenta: “As trabalhadoras domésticas estão entre as pessoas mais expostas aos riscos de contaminação da Covid-19; pois dependem de transportes públicos para ir ao trabalho, estão em contato direto com pessoas (crianças, idosos, pessoas doentes ou portadoras de deficiências) e não têm a opção de não trabalhar ou de trabalhar de casa, principalmente no caso das diaristas”.
Apesar da recomendação do Ministério, mulheres como Eliane Mota, 41 anos, não sentem que têm outra opção. Ela trabalha desde 2012 na casa da mesma família e, além desse emprego, tem orgulho de ser conhecida como uma faz-tudo. “Cozinho, faço doces e salgados e também faço cabelo e unha. O que aparecer, eu sei fazer.” Atualmente, Eliane é a única doméstica indo trabalhar todos os dias em um prédio de 48 apartamentos na zona sul de São Paulo.
Por conta da crise do coronavírus, Eliane se tornou a única fonte de renda em sua casa. “Meu filho e meu marido trabalhavam em restaurantes e perderam seus empregos. Eles estão em análise para o auxílio emergencial e eu, como sou registrada, não vou consegui-lo”, comenta. “Meu salário é de R$ 1.300 e meu aluguel é R$ 1.200. Tive que pagar metade do aluguel e usar o restante para comprar comida. Conseguimos nos manter, mas não é mais a mesma coisa.”
Para pegar seus ônibus diários, Eliane usa luvas e máscara. Para ela, é preocupante a falta de limpeza dos ônibus e o descuido das pessoas que pegam o transporte público. Como sua filha tem bronquite, ela toma todos os cuidados necessários para não se contaminar. “Eu tiro os sapatos antes de entrar na casa em que trabalho, descarto as luvas, troco de roupa e lavo as mãos e os braços.”
No começo da quarentena, sua patroa ofereceu 15 dias de folga, mas logo depois pediu para Eliane voltar. “Ela disse: ’E se eu te der mais folga e você ficar doente depois? Como é que eu faço?’. Acabei voltando, mas logo depois fiquei gripada e me ausentei de novo. Não tive sintomas de coronavírus, mas não tinha condições de sair de casa.”
No final, se automedicou com alguns remédios e voltou para o trabalho alguns dias depois. “Minha patroa não queria ficar sozinha e já tinha avisado que, se eu não fosse trabalhar, ela ia achar outra pessoa para entrar no meu lugar. Aí tive que ir, né? Como iríamos pagar o aluguel?”, conta Eliane, que se encontrou em uma encruzilhada. “Ou fico desempregada, ou trabalho. Como estou sem opção, fui trabalhar.”
Histórias como as de Eliane Mota e Fernanda Moraes são apenas um recorte de um problema muito maior no Brasil. O auxílio do governo exclui uma parcela gigantesca de famílias com histórias complexas demais para preencherem os requisitos. Quem sofre no final são os milhares de domésticos, em sua maioria mulheres negras, idosas e periféricas, que arriscam a vida todos os dias para manter a renda.