“Bike, bice, magrela… alguém aí chama a bicicleta de camelo? Renato Russo chamava” pergunta Taciana Ramos, vocalista do grupo Pequeno Cidadão, para uma plateia com muita energia e menos de 1,40m de altura. A introdução para a música ‘Bice bike magrela’ em um show no Sesc Vila Mariana mostra a mistura de idades e assuntos que une a banda, falando sobre todo tipo de coisa para e com as crianças, fazendo da brincadeira coisa séria, em alto e bom tom.
A Pequeno Cidadão explodiu no meio dos baixinhos quando “O Sol e A Lua” e “Pequeno Cidadão” apareceram na trilha sonora da novela Carrossel (SBT), apesar de fazerem música antes disso. Formada em 2010 por Taciana Ramos (Gang 90 & Absurdettes) , Edgard Scandurra (Ira!), Antonio Pinto (trilha sonora de ‘Amy’, ‘Cidade de Deus’) e seus filhos, cantavam juntos a experiência de estar crescendo e entendendo os lugares e pessoas pela primeira vez. Segundo a banda, o som é “música psicodélica para crianças bagunceiras e muito sabidas”. Os adultos trazem a sonoridade do rock que conhecem de carreira, e os baixinhos chegam com as letras. Com a plateia, todos se divertem fazendo música infantil - mas nada infantilizadora - sobre coisas reais da cidade e do cotidiano da perspectiva de quem ainda está descobrindo o mundo.
“Pais, se comportem aí": o show é dos pequenos
No Teatro Antunes Filho, na Vila Mariana, não se passaram nem 20 minutos até que só os pais estivessem nas cadeiras, e o pé do palco estivesse lotado de quem realmente veio ver a Pequeno Cidadão. Quando Taciana perguntava, eles respondiam, pulavam e gritavam quando sua música preferida entrava, eram como qualquer outra plateia vendo sua banda favorita. “Nossos shows, não sei se tem a ver com o rock, mas é contagiante. Por mais que pedimos que não venham [para frente do palco] , não corram, desde o primeiro, eles se soltam assim”, a vocalista conta.
Fã é fã em qualquer idade, mas unir essa faixa etária a um ambiente de música pede uma preparação especial. Malabarizando - literalmente - entre elementos lúdicos e sonoros, a banda convida o público a entrar na música para além dos ouvidos. O artista corporal Wallace Kyoskys cruza o palco dando piruetas e jogando claves e bolas para cima entre uma música e outra, infláveis sobem e descem e uma bola gigante é jogada à plateia, um jogo entre o lado de lá e o lado de cá do palco. Esse jeito de show-brincadeira apaga a linha que divide público e artista e cria uma experiência colaborativa de todos ali, não importa o que saibam tocar, não importa a idade que tenham.
Responsabilidade de gente grande
Do lúcido ao prático, as letras versam sobre tudo que pode caber no universo infantil: alegrias, bichos, desafios, tristeza, amor, esportes e muito mais. Muitas são composições que Taciana e Edgard criaram em casa para seus filhos, como a repetitiva “mamãe tamo chegando?”, que musicou uma viagem de carro de Taciana com os filhos. “Futezinho na escola” se trata de um dia normal na hora do recreio com os amigos, “Sk8” conta sobre truques no skate e “Tchau chupeta” fala exatamente sobre o que o título sugere. As canções se debruçam sobre o cotidiano da infância como pouquíssimos outros artistas fazem e que, se comparado à produção musical ao público adulto, abrange uma gama muito maior de temas, feito por uma banda só.
O objetivo dessas letras é formar pequenos cidadãos da Terra. Em doses homeopáticas, como quando se descobre o que é desperdício de água na escola e o que acontece com o lixo que produzimos, as crianças começam a entender o que é locomoção urbana e como a cidade molda o espaço que vivem. ‘Bice Bike Magrela’ fala sobre faixas de ciclismo na avenida, ônibus e engarrafamento, o perfeito gancho para fazerem o que as crianças fazem tão bem: perguntar o porquê as coisas são como são e como funcionam, e assim começarem a entender sobre poluição, trânsito e cidadania. Na faixa ‘Pequeno Cidadão’, os direitos e deveres começam em casa com a hora que pode escovar os dentes, jogar videogame, fazer a lição e amarrar o sapato.
Pais & filhos
Enquanto os menores trazem as experiências, os adultos completam com a melodia, cada lado ensinando e aprendendo como pode. No começo, Scandurra relembra durante entrevista para AGEMT que “pensava em fazer um projeto musical que chamasse nossos filhos para participar porque nós ficávamos muito tempo longe de casa, então era um plano para chamá-los para o nosso universo, não só de show mas também de gravação. Fizemos 3 álbuns com eles em estúdio, entendendo os arranjos, cantando e repetindo”.
Essa aproximação também era vontade dos fãs que conheceram esses músicos com cerca de vinte anos e agora criam pequenos cidadãos. “No começo foram fãs do Ira!, da Gang 90 [bandas que ocuparam maior parte da carreira de Scandurra e Taciana, respectivamente] que queriam mostrar pros filhos o guitarrista que tocava na banda que eles gostaram, mas depois expandiu", ela comenta. E mesmo os pais que só estavam lá com os filhos acabam virando fãs das melodias misturadas com o dia a dia de estar formando um ser humaninho que ganha espaço no mundo.
Enquanto as crianças que primeiro ocuparam os microfones do Pequeno Cidadão já estão com idade para votar, filhos de amigos entram para substituí-los no espetáculo. Carmen Ferreira, Vic Ferreira e Manu Ferreira foram as que assumiram o palco no Sesc Vila Madalena. Elas contam que uma das partes mais legais do show, além dos infláveis e “o homem da caveira” - mesmo artista que fez os malabarismo e piruetas em outra hora - é se apresentar para pessoas que poderiam ser seus colegas de classe. Ver gente da mesma idade cantando e se divertindo debaixo dos holofotes é uma das razões pela desinibição das crianças durante a apresentação e o que faz aquilo tudo tão único.
Cidadão para ouvir, ler e assistir
A Pequeno Cidadão realmente criou um ecossistema em torno da vida infantil, invadindo programas de TV, novelas, livros e até jornal. A canção “O Sol e a Lua” explodiu depois de aparecer em um episódio da novela Carrossel, e outras composições inspiraram livros como ‘Tchau Chupeta’ (Leya) e ‘Sk8 - Manual do pequeno skatista cidadão’ (Companhia das Letrinhas). Fruto de um estalo criativo, Tatiana criou o Jornal Pequeno Cidadão, que teve 17 edições produzidas por ela mesma e com colaboração de amigos que liam e queriam se envolver no projeto. Isso resultou em uma coletânea de curiosidades sobre a natureza, tutorial de acordes para as músicas da banda, letras de composições de outros artistas, receitas da vovó e reflexões sobre o mundo. Em qualquer que seja a mídia, a recepção e envolvimento dos baixinhos de ver e poder produzir algo sobre si é genuína - afinal, não é todo dia que, ao invés de dizer que é hora de ficar sentado e bonzinho, falam que é hora de ‘gritar bem alto e correr bem rápido”.