Como uma economia planificada combateu o coronavírus

por
Matheus Rodrigues
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11/05/2020 - 12h

A China foi o primeiro país a registrar casos de Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. O primeiro caso foi registrado oficialmente no dia 31 de dezembro de 2019 pelo governo chinês. Desde então, já foram registrados em todo o mundo quase 3,6 milhões de casos, com aproximadamente 260 mil óbitos.

Suspeita-se que o novo coronavírus tenha origem no consumo de carne de animais silvestres, como o morcego.

Os efeitos do coronavírus na China foram dramáticos. Cerca de 83 mil pessoas foram infectadas, com 4,6 mil mortes. Mas, com o surto controlado, os novos casos de infecção caem dia após dia. O modelo de combate ao vírus pela China foi exemplo para o mundo, que copiou a estratégia.

Esse modelo de combate contou com forte participação estatal na sociedade, mas também na economia, realocando produção e recursos para o combate ao vírus. Esse modelo pode ser a chave para o combate do coronavírus pelo mundo.

Em entrevista, Fernando Ustariz, bacharel em relações internacionais pela PUC-SP e mestrando em economia política mundial pela UFABC, falou sobre como a China conseguiu controlar rapidamente o surto.

“Na China, temos três aspectos-chave. O primeiro é a sensibilidade política. Como houve crises anteriores do coronavírus na China e no Oriente Médio, era sabido pela comunidade científica e o governo chinês que haveria a possibilidade de surgimento de um novo vírus”, disse.

Ustariz falou também sobre a capacidade de intervenção rápida da estrutura médica da China: “A infraestrutura sanitária da China, mesmo não sendo gratuita, tem uma boa capacidade de intervenção. A realocação de profissionais para áreas atingidas, além de colocar a construção civil à disposição da saúde para a construção de hospitais, ajudou no combate rápido ao vírus”.

O terceiro e último fator é a capacidade científica e tecnológica da China em relação aos países não centrais.

“A alta capacidade de tecnologia da China foi essencial para que, ao mesmo tempo que combatia o vírus, conseguisse estudar a engenharia genética, produzir novos testes. Essa é a principal vantagem da China em relação aos outros países (periféricos)”, expôs Ustariz.

Todos esses fatores decorrem de uma política com forte investimento e intervenção estatal, direcionados, por exemplo, para as áreas de educação, saúde, ciência e tecnologia. O modelo do Estado brasileiro, blindado com a emenda constitucional que impôs um teto para os gastos públicos, não consegue concentrar mais recursos nessas áreas, mesmo com a necessidade provocada pela pandemia.

As medidas da China tiveram efeito no Ocidente. Preocupados com a economia e com a pressão popular pela garantia de empregos, a Espanha e os EUA, por exemplo, anunciaram ações com forte intervenção estatal em suas economias.

ESPANHA

Na Espanha, o governo estatizou todo o sistema de saúde privado, colocando-o à disposição do Ministério da Saúde enquanto durar o combate à pandemia.

“Durante o período de epidemia de Covid-19, os cuidados com a saúde da população não podem ser atendidos adequadamente apenas com os recursos materiais e humanos atribuídos a cada comunidade autônoma. Portanto, eles terão à sua disposição centros e estabelecimentos de saúde privados, seus funcionários, e as entidades focadas em acidentes de trabalho”, diz o decreto espanhol.

Além dessa medida, o governo espanhol prometeu uma ajuda de 117 bilhões de euros. O pacote de empréstimos, garantias de crédito e ajuda direta representa cerca de 20% do Produto Interno Bruto do país. As medidas incluem 100 bilhões de euros em garantias de crédito asseguradas pelo Estado e ajuda de liquidez ilimitada para as empresas.

“Nosso objetivo é impedir que uma crise temporária tenha um impacto negativo permanente em nosso mercado de trabalho. Queremos proteger o emprego e queremos que as empresas saibam que o governo as ajudará. Ninguém será deixado para trás”, disse o presidente da Espanha, Pedro Sánchez.

EUA

Os EUA são outro exemplo de intervenção estatal. O presidente Donald Trump lançou mão da Lei de Produção de Defesa (LPD), criada durante a Guerra da Coreia (1950-1953), para obrigar a General Motors (GM) a fabricar respiradores para assistir pacientes com coronavírus.

Além da GM, a chamada reconversão produtiva pode levar empresas têxteis a produzirem máscaras e jalecos médicos, por exemplo.

Antes de aprovar a LPD, Trump chegou a se declarar contrário, quando afirmou: “Não somos um país que nacionaliza suas empresas”. Com a falta de respiradores nos hospitais dos EUA e a dificuldade de compra no exterior, Trump acabou revendo sua posição.

A LPD permite que o presidente obrigue as empresas a aceitarem e priorizarem contratos necessários para a defesa nacional. Também autoriza o governo a requisitar propriedades em caso de necessidade e forçar a indústria a expandir a produção e a oferta de recursos básicos, impondo controles de salários e preços.

Além dessa medida, Trump anunciou o maior pacote econômico da história dos EUA, de mais de US$ 2 trilhões (R$ 10 trilhões), aprovado no Senado e na Câmara de Representantes com o apoio de ambos os partidos.

Sobre os possíveis efeitos colaterais das intervenções estatais no sistema capitalista,Ustariz aponta três tendências internacionais. A primeira é a diminuição dos fluxos de transação comercial. “Globalização não vai se enfraquecer necessariamente, mas haverá uma reconversão produtiva para a área da saúde", projetou. Um exemplo disso é a determinação de Trump em relação à GM.

Outro efeito é o enfraquecimento dos EUA como liderança mundial e o crescimento do nacionalismo. Ustariz afirmou que não existe um protagonismo dos EUA, como havia em 2008 com o então presidente Barack Obama, que reagiu à crise financeira com um esforço de cooperação internacional.“Hoje vemos que as ações não são coordenadas através de uma liderança política internacional. O único país que poderia fazer são os EUA. A China tem feito algumas atitudes pontuais, mas não é vista como referência”, continuou.

Essa falta de cooperação internacional é uma opção política de Trump, segundo Ustariz. O isolacionismo tende a enfraquecer instituições globais como a OMS (Organização Mundial de Saúde) e a ONU (Organização das Nações Unidas).

A terceira tendência é o aumento da vigilância, da tecnologia e da inteligência artificial. Desde a crise do terrorismo, em 2001, a securitização da sociedade é uma realidade presente nos países capitalistas. “Na Coreia do Sul, por exemplo, você faz um teste, usa um aplicativo e, por geolocalização, todas as pessoas que estavam em um raio de 100 metros que tiveram contato com alguém infectado entram nas listas de suspeitos e devem fazer o teste”, finalizou.