Como funciona a indústria de multas

Motoboy recebe pena por infrações, sem cometer delitos
por
Raphael Dafferner Teixeira
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06/11/2020 - 12h

Conheci o Matheus no ano de 2017, por um amigo um de infância, o Gui. Matheus é um rapaz de pele parda, olhos escuros, e cabelos negros e bem lisos, mas passa a maior parte do tempo de boné. Corinthiano, ele jogava como goleiro no “Pequeninos do Jóquei” quando era mais novo, mas acabou desistindo da vida de jogador. Em 2018, ainda no 3° ano do ensino médio, abriu uma loja de aparelhos eletrônicos, em que consertava celulares. A loja não dava muito dinheiro, então, no final do ano passado, começou a procurar novos empregos.

Foto: Raphael Dafferner Teixeira
Matheus França

Curiosamente, a história começa no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Entretanto, apesar de ser feriado em São Paulo, em Osasco não é (o que, cá entre nós, é um absurdo). Logo, seu curso, na Faculdade de Tecnologia Prefeito Hirant Sanazar (Fatec), localizada em Osasco, onde estuda Manutenção Industrial, teve aula normalmente. Saiu um pouco mais cedo do fim da aula, pegou sua moto e foi a uma empresa transportadora localizada perto da divisa de São Paulo com Cotia – cidade que também não adere ao feriado – para entregar seu currículo. A empresa fica no final de uma rua sem saída, onde cerca de dois ou três jovens empinavam suas motos.

Após algumas tentativas falhas, tocou o interfone e foi atendido pelo porteiro, que o informou ser o único funcionário presente lá. Ele decidiu ir para casa, mas ainda havia muita coisa para acontecer.

Quando estava saindo, havia uma viatura da polícia militar na rua, que abordou os jovens que estavam empinando. “Nessa hora eu pensei assim ‘pô, eles vão me parar também’, porque, na teoria, eu também estaria empinando. Como aquele ditado lá fala, ‘quem se mistura com porcos’... algum bagui assim, né? Mas eu também pensei, vou passar tranquilo, eu não fiz nada”.

“Quando eu passei, o policial me abordou como se eu tivesse realmente empinando, ele deduziu que eu tava com eles”. Matheus me contou que a abordagem foi “tranquila”. Essas aspas não estão aí sem motivo, não se engane. Ele me disse que os policiais começaram a procurar motivos para lhe dar uma multa. “Ele falou que meu pneu tava careca, sendo que eu tinha acabado de trocar o pneu, falou que meu farol tava trincado, o que é mentira. Eu tinha acabado de fazer troca de óleo, tudo. A moto tava novinha”.

O policial disse que lhe daria a multa pelo pneu careca, o que o revoltou. Matheus não é um rapaz de aceitar injustiças tão facilmente, então retrucou baixinho: “Quando pegam quem tá certo, inventam coisa, e quando pegam quem tá errado não fazem nada”. O policial ouviu, se estressou e trocou a razão da multa: agora, por empinar a moto, coisa que o Matheus não fez. Ele chegou a questionar o policial sobre a multa, afirmando que não estava empinando a moto. Porém o policial, sem prova alguma, manteve seu posicionamento. O policial lhe deu o papel da multa, mas Matheus, astutamente, não assinou, já que tinha a intenção de recorrer - se assinasse estaria aceitando a acusação feita pelo policial.

Revoltado, foi para casa, se culpando por estar no lugar errado na hora errada. Depois de refletir um pouco, decidiu aproveitar que ia a casa de seu padrinho, que mora perto do Parque Continental, em Osasco, para um churrasco, e voltar à empresa para ver se conseguia pegar alguma filmagem que comprovasse sua inocência.

Chegando lá, por volta das 14 horas, se decepcionou e não obteve resposta pelo interfone, então, resolveu voltar outro dia. Quando estava saindo, entretanto, uma base militar apareceu, e o parou novamente. Matheus contou ao policial a razão de estar lá, porém não contou em detalhes o ocorrido, com medo de levar mais uma multa sem razão. Esse segundo policial continuou o acusando de ter empinado a moto, e Matheus seguiu negando. Entretanto, o assunto se perdeu, e eles ficaram cerca de uma hora conversando sobre outras coisas, até ser dispensado. Então, aliviado, Matheus foi à casa de seu padrinho.

Porém, a história não acaba por aí. 20 dias depois, recebeu duas notificações de multa, as duas por empinar a moto: uma dada pelo primeiro policial, e a outra marcada como às 14 horas, horário em que conversou com o segundo policial. As duas multas somavam R$ 592.

Ele se viu, então, num dilema: pagar as duas multas, perder sua CNH, que era provisória até então, esperar um ano, pagar mais R$ 2.400 para refazer a carteira, o que implicava ficar mais um ano com a provisória e um grande prejuízo. A outra opção, que ele escolheu, era pagar R$ 800 para uma pessoa retirar a primeira multa no DETRAN e mais R$ 300 para essa pessoa pegar os pontos da segunda multa para ela. Ele optou ir pelo caminho “fora da lei”.

Passou-se um tempo, ele começou a trabalhar de motoboy para um restaurante japonês. Quando chegou em agosto deste ano, ele foi renovar sua carteira de habilitação. Porém, ele não conseguiu, já que o site dizia que ele tinha pontos em sua carteira, e descobriu ser a mesma multa de novembro. Conversou com a mulher que ele havia pagado para retirar os pontos de sua carteira, que lhe cobrou mais R$ 2.800 para eliminar a multa. “Eu tive que fazer isso. Se não eu ia ter que ficar um ano sem poder tirar a habilitação, eu ia perder o emprego. O dinheiro que eu ganho é o mesmo que paga os remédios da minha mãe [que tem transtorno de bipolaridade], que antes era R$ 400 a caixinha [ela consome duas por mês].”

“Eu até tentei recorrer, mas era a minha palavra contra a de dois policiais, e a empresa não quis me dar as filmagens”. Matheus é um dos inúmeros casos de trabalhadores que têm sua vida dificultada pela Polícia Militar. Nas palavras dele, “devem existir casos muito piores”.

 

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