Como comunidade de Porto Alegre enfrentou os danos causados pela enchente de 2024

Cooperativa é a grande responsável por reerguer a população da Vila Nossa Senhora Aparecida após tragédia climática, reafirmando a máxima do “povo pelo povo”
por
Cecília Schwengber Leite
Laura Petroucic
|
10/09/2025 - 12h

Em junho de 2025, um ano após a enchente que assolou o Rio Grande do Sul em 2024, o bairro Sarandi – um dos mais afetados de Porto Alegre – se viu novamente sob ameaça de cheias. Um intenso volume de chuvas causou alagamentos, transbordamento de dois bueiros e elevou o nível de água no dique do bairro, preocupando os moradores traumatizados com a catástrofe do ano passado. 

Localizado na periferia da zona norte da capital gaúcha, o bairro Sarandi é um dos mais populosos e abriga algumas comunidades, chamadas pelos moradores de Vilas. Desde março deste ano, famílias em situação de desemprego ou baixa renda viviam um impasse com a prefeitura devido a necessidade de sua remoção das casas em que viviam para a reforma do dique rompido durante a enchente. Houve negociação, e as obras de reforço estão em andamento. 

Em julho de 2025, moradoras da Vila Nossa Senhora Aparecida, localizada em Sarandi, relataram a situação da comunidade e destacaram o papel significativo das cooperativas lideradas por Nelsa Nespolo para a restabilização dos seus habitantes. “Aqui foi o povo pelo povo”, afirma Leonilda Quadros, aposentada que teve a sua casa inundada durante a enchente. 

Nelsa Nespolo é diretora-presidente das cooperativas Univens e Justa Trama, referência em Economia Solidária (modelo econômico baseado na cooperação, autogestão e distribuição equitativa de lucros). Ambas as entidades, assim como o banco comunitário Justa Troca, dividem o mesmo endereço na Vila Nossa Senhora Aparecida e, durante e pós enchente, tiveram e vêm tendo papel fundamental e central na recuperação das famílias da comunidade. 

A Rede de Algodão Agroecológico Solidário Justa Trama é um projeto que envolve cinco estados brasileiros e 700 cooperados e cooperadas, entre agricultores, tecelões, artesãs e costureiras. Atualmente, é a maior cadeia produtiva brasileira de economia solidária no setor de confecção. No RS, uma parte importante deste projeto acontece na cooperativa de costureiras Univens. Nelsa destaca o papel da cooperativa no empoderamento e geração de renda para mulheres, muitas vezes já de meia idade e sem estudo. 

O banco comunitário Justa Troca faz parte da Associação de Moradores da Vila e tem como moeda social o Justo. Suas administradoras de cursos, Adriana Nunes, e financeiro, Andreia Padilha, contam que a iniciativa vem sendo fundamental para dar apoio às famílias e organizar a economia da comunidade. A iniciativa se mantém por meio de parcerias com institutos e principalmente com a UNISOL (Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários), uma Organização da Sociedade Civil, sem fins lucrativos e de abrangência nacional. 

Por meio do Justo, que é aceito em quase todo o comércio da Vila (e possui fundo garantidor), o banco fornece microcréditos para moradores iniciarem um empreendimento, ou se reerguerem após algum ocorrido – como a própria enchente, ou uma situação de desemprego. Além disso, o Justa Troca promove doações de cestas básicas compostas por alimentos da agricultura familiar e MST, iniciativas de trocas de produtos, cursos variados de formação de microempreendedores e feiras de gastronomia e artesanato, que geram renda para os vendedores formados nos cursos. 

Adriana e Andreia contam que o espaço físico onde se encontram as cooperativas está localizado na única rua da comunidade que não foi completamente inundada durante a enchente. Assim, o local concentrou as iniciativas para assistir de todas as formas possíveis a sua população, tornando-se ponto de distribuição de produtos, doações e de muito trabalho voluntário e mobilização de recursos. As 1165 famílias da comunidade cadastradas receberam marmitas, água, roupas, cestas básicas, produtos de limpeza e higiene, e posteriormente alguns móveis e até mesmo brinquedos para as crianças. 

Dados do Banco Justa Troca mostram número de famílias beneficiadas com doações.
Dados do Banco Justa Troca mostram número de famílias beneficiadas com doações. 

Em meados de agosto de 2024, o banco passou a promover cursos profissionalizantes para que os moradores da Vila retomassem suas atividades de geração de renda. Abriram grupos nas áreas de costura, gastronomia, beleza, construção civil e cuidadores de idosos. A parceria com a Instituição Gerações foi fundamental para a doação de equipamento para os participantes. Assistida pela cooperativa e aluna do curso de tricô, Leonilda Quadros destaca o trabalho intensivo e humano que salvou a comunidade durante e no pós enchente: sem essa ajuda, não sei o que teria sido de nós. 

Fachada da Cooperativa Univens em um dia de entrega de doações. Reprodução: acervo da cooperativa.
Fachada da Cooperativa Univens em um dia de entrega de doações. Reprodução: acervo da cooperativa.

Leonilda conta que, em sua rua, assim como na maioria das ruas da comunidade, o nível da água subiu a ponto de só ser possível passar de barco. A água não vinha somente do transbordamento do dique, vinha também de baixo para cima, saindo do esgoto. “Nós erguemos os móveis antes de sair, pensando que no dia seguinte voltaríamos e a água estaria batendo na canela… mas não sobrou nada”, relata a moradora, que viu a água atingir o telhado de sua casa. 

Vila Nossa Senhora Aparecida durante a enchente. Reprodução: acervo da cooperativa.
Vila Nossa Senhora Aparecida durante a enchente. Reprodução: acervo da cooperativa.

Demorou semanas até que Leonilda pudesse ao menos abrir a porta e, enquanto isso, precisou se deslocar para diversas casas de parentes. “Era desesperador… quando pensávamos que a água ia baixar, subia de novo”, relembra. Quando foi possível acessar sua casa, o cenário era pós-apocalíptico: um cheiro podre, de gente ou bicho morto, misturado com esgoto. Os móveis e utensílios estavam todos espalhados, os canos estourados. Tinham até mesmo cobras, lagartos e peixes pelos arredores. “Parecia um filme de terror”, afirma. 

Após semanas, Leonilda conseguiu voltar para casa, que ainda hoje está em reconstrução, assim como as de muitos moradores. “Quando abri a porta e vi que não tinha sobrado nada, o primeiro pensamento foi de dar meia volta, largar tudo e ir embora. Só pensava: acabou, não vou ficar aqui”. Atualmente, a Vila se vê cheia de “ruas-fantasma”, pois muita gente não voltou depois de perderem tudo. “Ninguém se preparou para a enchente, porque nunca tinha acontecido algo assim. A maioria das pessoas saiu de casa só com a roupa do corpo, e deixou tudo para trás”, comenta. 

Meses depois, ruas da Vila Nossa Senhora Aparecida ainda acumulavam entulho aguardando recolhimento. Reprodução: acervo da cooperativa.
Meses depois, ruas da Vila Nossa Senhora Aparecida ainda acumulavam entulho aguardando recolhimento. Reprodução: acervo da cooperativa. 

Entre os que seguiram morando na comunidade, a maioria carrega traumas, o que faz com entrem em pânico com as ameaças de novas cheias. Quando há chuvas prolongadas por mais de dois dias, já se iniciam movimentações desesperadas, preventivas. “Eu não consigo dormir a noite quando começa a cair muita água, já corro para a janela ver como está a rua”, relata Leonilda. 

O descaso da prefeitura com o bairro Sarandi em relação a Orla (que atrai turismo e investimento empresarial), rapidamente reconstruída após a enchente, é notório. Levou meses para que o poder público da capital gaúcha mobilizasse o recolhimento dos entulhos, realizasse as reformas necessárias e as limpezas pesadas. Para isso, foi preciso um levante popular no bairro, do qual moradores da Vila Nossa Senhora Aparecida participaram, exigindo dignidade. O curioso é que, apesar disso, o então prefeito Sebastião Melo (MDB) foi reeleito em 2024 com forte base eleitoral em Sarandi, segundo dados do TSE. 

Moradores protestam pela limpeza da Vila Nossa Senhora Aparecida. Reprodução: acervo da cooperativa.
Moradores protestam pela limpeza da Vila Nossa Senhora Aparecida. Reprodução: acervo da cooperativa. 

Apesar da tragédia sem precedentes, muitos danos à população poderiam – e deveriam – ter sido evitados com um programa de investimento em prevenção de enchentes, que foi gradualmente negligenciado pela prefeitura da capital durante o primeiro mandato de Sebastião Melo. Segundo dados do Portal da Transparência de Porto Alegre, em 2023 o dinheiro em caixa do departamento responsável era de R$ 428,9 milhões. Entretanto, não houve recursos destinados à melhoria no sistema contra cheias. Mesmo em um contexto de crise climática, a queda no investimento da prefeitura na prevenção de enchentes foi gritante: em 2021, a verba era de R$ 1,7 milhão. Já em 2022, caiu para apenas R$ 141 mil até que, em 2023, o orçamento foi nulo. 

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