Como a arquitetura residencial compacta impulsiona o delivery

A classe média ganhou tempo, mas as cozinhas estão menores e as pessoas não possuem tempo para cozinhar
por
Enzo Munhoz Cury, Henrique Sales Barros e João Victor Capricho Scalzaretto
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23/06/2021 - 12h

Por Enzo Munhoz Cury, Henrique Sales Barros e João Victor Capricho Scalzaretto

 

Parte da classe média entrou em home office ou em regime híbrido com a chegada da Covid-19 no Brasil e, mesmo assim, não possui tempo para cozinhar. As viagens estressantes de ônibus e metrô, assim como os trajetos cheios de trânsito para se dirigir e voltar do trabalho, deixaram de existir para muitos — mas de nada adiantou.

Sem tempo para preparar pratos capazes de dar energia para o corpo ao longo do dia, o delivery entrou em cena. Comparando os anos de 2019 com 2020, os gastos com comida por entrega nos três principais aplicativos do gênero no mercado brasileiro — Rappi, iFood e UberEats — cresceram quase 150%, segundo registros da startup de gestão financeira Mobills.

Dados coletados entre julho e agosto de 2020 pela Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) em pesquisa junto ao Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas) vão na mesma linha. Antes da pandemia, 25% dos restaurantes, lanchonetes e correlatos usavam plataformas de delivery para fazer negócios. Depois da covid-19, o índice subiu para 72%.

“O número de pedidos no iFood já caminhava em crescimento gradativo, mas a pandemia trouxe um aumento bem significativo”, avalia Pedro Quilichini, analista pleno de insights e melhoria contínua do aplicativo. Para ele, o advento da crise sanitária fez com que as pessoas percebessem que fazer compras online “não é um bicho de sete cabeças”.

Mas para além da praticidade do delivery, há outra coisa que faz com que o modelo seja preferido quando comparado ao preparo alimentar nas cozinhas: as casas e, principalmente, os apartamentos, estão mais pequenos. Resultado: residências menores levam a copas menores — ou, como se convém chamar no mercado imobiliário: compactas.

Em 2019, 66% dos imóveis lançados na capital paulista possuíam menos de 45 m² — ou seja, eram compactos —, segundo dados do Secovi-SP, o sindicato do setor imobiliário de SP. O percentual estava muito acima da média histórica, de 25%, apontou Basílio Jafet, presidente da entidade, no balanço anual da associação, divulgado na época.

Delivery por aplicativos teve salto com a pandemia
Delivery por aplicativos teve salto com a pandemia. Imagem: Reprodução

Da comunhão para a compactação

Uma das primeiras tentativas de explicar a compactação das cozinhas modernas é o conceito de kitchenette (não confundir com os “apartamentos kitnet”, embora tenham raízes semelhantes). Cunhado nos Estados Unidos no início do século passado, ele buscava descrever o fenômeno das cozinhas diminutas que, muitas vezes, se conectavam com as salas e outros cômodos das residências.

No Brasil, em 2004, em dissertação para a obtenção do grau de mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Glauce de Albuquerque identificou apartamentos em Natal que dificultavam atividades de preparo alimentar e circulação por possuírem a cozinha e a área de serviço conjugadas.

O objeto do estudo foi o Plano 100, importado nos anos 1990 dos grandes centros urbanos do sul do país e tocado por uma construtora privada no RN. O projeto consistia em oferecer apartamentos menores em um condomínio verticalizado, com vários edifícios, e que cabiam no bolso de uma classe média empobrecida, já que era possível financiá-los em até 100 meses — daí, o nome.

Enquanto usavam o fogão da cozinha, os residentes do Plano 100 não podiam lavar roupa pois havia o risco de cair sabão nas panelas. Cozinhar enquanto a roupa secava no varal era ainda mais inviável, já que poderia impregnar as roupas com cheiro de gordura. “Nos condomínios, a insatisfação com relação ao fato da cozinha ser conjugada à área de serviço foi bastante elevada”, constatou.

Em artigo publicado em 2007, o professor da USP (Universidade de São Paulo) Marcelo Tramontano notou que os apartamentos em São Paulo estavam ficando cada vez menores, com as salas e as cozinhas fundindo-se. Resultado: desencorajamento da preparação de pratos elaborados e de longo cozimento, o que levava a uma alteração nos hábitos alimentares do paulistano médio.

Crises econômicas frequentes e um aumento populacional constante fizeram com que mais clientes entrassem no mercado imobiliário, só que mais empobrecidos que em tempos de outrora. Com isso, segundo o arquiteto, as imobiliárias passaram a oferecer apartamentos menores e mais baratos, que cabiam melhor no bolso — processo este que, em Natal, levou à criação do Plano 100.

“A cozinha foi ficando cada vez mais retangular e menor, limitando-se, via de regra, a uma parede equipada em um cômodo diminuto: um novo corredor, ligando o hall de entrada à área de serviço. Ganhou, no entanto, tomadas suplementares, em vista da invasão dos novos eletrodomésticos capitaneados pelo estímulo publicitário ao super-equipamento”, explicou.

A constatação de Tramontano vai ao encontro com o que pensa Vivian Sábio, 43 anos, que tem uma relação próxima com o preparo alimentar, trabalhando na cozinha de uma rede de confeitarias em São Paulo. Para ela, as copas antigas eram ambientes de reunião familiar, enquanto as de hoje parecem servir unicamente para nutrir o corpo no menor tempo de preparo e consumo possível.

“Estamos quase nos alimentando de cápsulas de vitaminas, de aminoácidos”, pontua, também citando a questão dos eletrodomésticos. Não é por menos: com toda a tecnologia que possuem, eles incentivaram a industrialização e o processamento de alimentos como, por exemplo, bolos (é só bater a massa pronta no liquidificador) e lasanhas (que tal no microondas?), que ficaram mais práticos para se preparar.

A cozinha de Vivian: compacta e superequipada
A cozinha de Vivian Sábio: compacta e superequipada. Imagem: Arquivo Pessoal

Inaptidão e necessidade

Mateus Dias Vilela, doutor em Comunicação Social pela PUCRS (Pontíficia Universidade Católica de São Paulo) explica que, antes da pandemia, a classe média vivia muito tempo fora de casa, atarefada com trabalhos e outros afazeres da vida moderna, e não tinha tempo para cozinhar. A consequência disso, acrescenta, foi a crescente inaptidão para o preparo alimentar neste estrato social.

A questão pode ser entendida retomando os dados da Abrasel junto ao Sebrae sobre a entrada dos restaurantes no modelo de delivery: agora, os clientes desses locais estavam em apartamentos com cozinhas compactas e sem aptidão para desenvolver pratos capazes de fornecer "sustância" ao corpo ao longo do dia. A 'solução delivery' veio ao socorro desse público.

“Os programas de televisão sobre culinária e alta gastronomia também têm contribuído para um uso da cozinha menos social e mais individualizado, com foco na satisfação pessoal e na criação”, diz ele, que, em 2015, ao lado de Tauana Mariana Weinberg Jeffman, escreveu o artigo “A cozinha pós-moderna do MasterChef Brasil: Social TV e mídia que se propaga no Twitter”.

No estudo "Implicações da pandemia da covid-19 nos hábitos alimentares", publicado este ano pela nutricionista Sabrina Alves Durães ao lado de outras três pesquisadoras, é destacado um aspecto ainda mais negativo sobre o aumento do consumo de delivery durante a crise sanitária: a facilidade que se ganhou para comprar produtos de baixa qualidade, como alimentos de restaurantes fast food.

O consumo de alimentos provenientes desses locais aliado ao baixo nível de atividade física da população devido às políticas de isolamento social, acrescenta, pode desencadear em uma série de doenças, como obesidade, doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão etc. — e todas estas citadas colocam o indivíduo em um ou mais grupo de risco de agravamento da covid-19.

Tendo em vista o potencial de desenvolvimento de uma série de comorbidades entre a população, a nutricionista adverte sobre a necessidade de uma alimentação mais saudável. “Faça dos alimentos in natura e minimamente processados a base da sua alimentação. Consuma diariamente frutas, legumes, verduras, grãos, carnes e ovos. Beba bastante água e utilize óleo, sal e açúcar com moderação”, pede.

Como dica, Durães recomenda a consulta do "Guia Alimentar para a População Brasileira", elaborado pelo Ministério da Saúde, e do “Guia para uma Alimentação Saudável em Tempos de Covid-19”, da Asbran (Associação Brasileira de Nutrição), que fornecem orientações e nortes para uma alimentação mais saudável e menos dependente de terceiros ou da indústria.

“O guia (da Asbran)  possui  dicas  de alimentação saudável na prática, com mudanças de hábitos, planejamento das refeições em casa, dicas para a  realização das compras sem desperdícios, higienização segura dos alimentos, armazenamento, preparo e conservação durante a pandemia de covid-19”, acrescenta.
 

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