Na contemporaneidade, o mesmo país que clamava por liberdade alguns anos atrás, chora os reflexos de um período sem precedentes. A recente invasão russa à Ucrânia, no fim de fevereiro, marca uma nova era global, principalmente no que diz respeito as disputas pelo poder. O confronto, reverbera uma vertente híbrida da guerra, pautada nos estudos cognitivos da mente humana, e em três pilares fundamentais: ciência, tecnologia e mídia.

A guerra, por sua vez, possui uma trajetória longínqua que iniciou-se nas antigas batalhas relacionadas ao estado de Lagash, por volta de 2525 a.C. Já durante o Renascimento, Nicolau Machiavel defendia a tese de que um grande governante deveria assumir sua profissão nada mais além do conflito. A ótica de que “O Príncipe” não deveria ser amado por seu povo, mas sim temido por ele, perdura desde a Idade Média. Aliado a essa premissa, com a finalidade de se tornar bem-sucedido durante os conflitos, o italiano pregava que o domínio das técnicas, sistemas e estratégias era essencial.
Dessa forma, desde o século XIV a ideologia de que a ciência era fundamental dentro das discussões sobre logística de guerra vem sendo propagada, uma vez que foi ela quem sempre produziu e, ainda produz, meios para a continuação de confrontos. Por sua vez, o desenvolvimento tecnológico na produção das armas, tornou ainda mais brutais as consequências dos conflitos. Segundo o coronel da reserva do Exército, Orizon Ruyter de Freitas Jr, com o advento da tecnologia, foi possível incorporar dispositivos capazes de maximizar o dano causado, como por exemplo, a mira eletrônica. Ainda de acordo com o militar, é o uso da ciência que dita as relações de poder nos dias de hoje.
Contudo, para se compreender o período exato em que, principalmente os europeus reconheceram a vantagem que ela poderia lhes proporcionar, é preciso retornar ao cerne da Primeira Guerra Mundial. Até então, nenhum outro enfrentamento havia causado mais de dois milhões de mortes. Todavia, entre 1914 e 1918, nove milhões de pessoas perderam suas vidas, não pelas mãos da Tríplices Aliança, ou dos “Aliados”, mas sim pela ciência.
E foi pela Ciência, durante o conflito, que a invenção da metralhadora, creditada à Hiram Maxim, se transformou em um mecanismo mais mortífero. No entanto, a química também teve um papel muito importante no decorrer da guerra. Levando em consideração o enorme número de armas e munição, as formações em linha deixaram de fazer sentido, ao passo que o de canais abaixo do solo tornou-se uma maneira viável de defesa. Com o intuito de fazer os inimigos saírem das trincheiras, os alemães utilizaram o gás cloro, que atacava as células do sistema respiratório. O contra-ataque não demorou e veio quando os cientistas desenvolveram filtros e máscaras capazes de neutralizar os efeitos do gás.

O confronto, porém, ainda estava longe do seu desfecho. Enquanto a química continuava a causar danos localizados, tanques começaram a ser utilizados, ao mesmo tempo em que os aviões foram equipados com metralhadoras. Nos oceanos, os submarinos também tiveram sua importância durante o combate. Por fim, dentro de um contexto cibernético, o fato dos alemães terem atrapalhado a circulação de produtos para a Inglaterra foi um dos combustíveis que levaram a Europa a destruição.
Mas, além das milhões de perdas irreparáveis, as consequências da Primeira Guerra Mundial foram experimentadas no mundo inteiro. A criação de um ciclo competitivo de inovação provocou incessantes desdobramentos, presentes até os dias de hoje. Entretanto, a principal concepção deixada pelo conflito foi que, para realmente ter sucesso, era estritamente necessário inventar e inovar antes dos demais. Tal máxima impulsionou a criação de novos mecanismos ainda mais letais que deixariam sua marca duas décadas depois.
Idealizada por H. G. Wells, a bomba atômica não passava de uma utopia, um conceito ficcional atrelado às obras do escritor britânico, ainda em 1914. No entanto, anos mais tarde o cientista Leo Szilard realmente descobriu-a, ao passo que Albert Einstein sugeriu que ela poderia ser construída na prática. Em agosto de 1939, o alemão assinou uma carta destinada ao então presidente americano Franklin Roosevelt, alertando que a Alemanha Nazista poderia construir um novo tipo de bomba, extremamente perigosa e que por essa razão estavam extraindo urânio em minas na Tchecoslováquia.
A carta, apenas foi assinada por Einstein. Quem a escreveu foi justamente Szilard. Sob um ponto de vista global, a escritura marcava o surgimento de uma nova era na história da guerra. Roosevelt tomou a frente do Comitê do Urânio que deu origem a principal corrida armamentista da Segunda Guerra Mundial. Em 1943, cerca de quatro anos após o início do conflito, Estados Unidos e Reino Unido fundiram suas pesquisas. Os cientistas britânicos tiveram um papel muito importante ao decifrarem o código secreto dos alemães. Além disso, ajudaram no desenvolvimento do radar e, mais tarde, no projeto Manhattan.

Dois anos após unirem forças, Estados Unidos e Reino Unido tornaram Manhattan uma espécie de segredo absoluto. Ninguém saberia quais seriam os próximos passos do projeto até 16 de junho de 1945, dia em que a primeira explosão nuclear foi realizada no Novo México. A experiência Trinity serviu como um teste para aquilo que se transformaria em uma das tragédias mais dolorosas testemunhadas pelo homem.
Em agosto do mesmo ano, após a morte de Roosevelt, Truman autorizou o uso das bombas de Hiroshima e Nagazaki. Centenas de milhares de pessoas foram assassinadas durante o ataque ou por consequência dele, algum tempo depois. Trinity não apenas decretou o início da Era Atômica, mas provou que a Ciência, responsável pelo surgimento de inúmeras tecnologias que alavancaram a humanidade, também tinha o poder de causar uma destruição em massa. Os cientistas assumiram o projeto com um grande entusiasmo, tanto pelo que poderia significar militarmente, quanto, principalmente, pela oportunidade de explorar os limites do conhecimento humano e recursos da época. Contudo, uma vez concluída, a bomba causaria um efeito nunca antes visto e eles assistiriam, perplexos, as consequências do que haviam ajudado a construir. Mesmo após as críticas aos ataques, a tragédia marcou o ponto inicial da corrida nuclear.
Quase quatro anos após o desfecho da Segunda Guerra Mundial, no dia 29 de agosto de 1949, a União Soviética também testou sua primeira bomba atômica em Semipalatinsk. O experimento apenas endossou o que já se sabia: a Guerra Fria se tornaria uma realidade. A partir desse momento, o desenvolvimento tecnológico já consistia na principal frente do conflito. O lançamento dos satélites Sputnik 1 e 2, fez com que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos criasse a ARPA (Advanced Research Projects Agency), divisão apoiada pelo governo americano, que desenvolvia pesquisas em tecnologias de computadores nas universidades
É exatamente nesse contexto de embate tecnológico que, em 1969, surge a Internet, sob o nome de Arpanet. A visão do Pentágono à época era que a rede seria um importante mecanismo de defesa, caso houvesse um ataque nuclear dos soviéticos. Os dados permaneceriam armazenados, com o intuito de manter ativa a comunicação entre militares e cientistas. De acordo com o coronel Orizon, ainda que restrita ao uso militar, o novo sistema comunicacional adquiriu um caráter revolucionário. Segundo ele, o grande efeito que ela trouxe foi na questão da velocidade das comunicações. Como consequência disso, as disputas pelo poder começaram a ser pautadas pelo acesso a informação, o que deu origem a guerra de narrativas. É justamente nesse contexto tecnológico que a Guerra Fria se instaurou.
Sob um ponto de vista global, o conflito impulsionou o uso da ciência e da tecnologia. A Guerra Fria se caracterizou como um fenômeno plural que moldou as condições e as decisões, assim como as relações internacionais, em meio a rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética. O embate, ainda que indireto, criou um forte clima de tensão sobre a possibilidade de um confronto aberto entre as duas potências. Como consequência desse processo, após a dissolução da URSS, Ucrânia, Bielorrússia e Cazaquistão assinaram um acordo na década de 90, no qual abriram mão de seu armamento nuclear.
Na contemporaneidade, entretanto, os reflexos desse acordo começaram a ser testemunhados. De acordo com a ONU, mais de 3 mil civis morreram na Ucrânia desde a invasão russa ao país. A entidade considera que esse número é ainda maior, uma vez que o confronto dificulta o acesso a determinadas áreas do país. A estimativa é de que pelo menos 5,5 milhões de pessoas fugiram do território ucraniano desde o princípio da guerra. Tal cenário não remete em nada aquele de uma década atrás, no qual Estados Unidos e Rússia assinaram o New Start.
O acordo, firmado em 2010, limitaria o arsenal nuclear das duas potencias a “somente” 1500 ogivas ativas até 2021. Contudo, embora ele tenha sido prorrogado por mais cinco anos, ainda não cobre pontos críticos da tensão entre os países. Por esse motivo, Moscou continua desenvolvendo novos super mísseis nucleares, enquanto Washington multiplica e rearma as bases da OTAN. Era evidente que uma hora o preço viria. Porém, o mais cruel é que aqueles que não tinham nada a ver com o embate entre Estados Unidos e Rússia são os que pagam com a própria vida.

Diante desse cenário, chega a ser uma utopia acreditar que a Guerra Fria, de fato, acabou. Ela está ai, para todo mundo ver. Os desdobramentos recentes sugerem que, na Ucrânia, a nova ordem mundial está sendo decidida. O conflito entre russos e norte-americanos está muito longe de acabar, principalmente em um contexto global cada vez mais dominado pela tecnologia que, por sua vez, permite a construção e consolidação de confrontos dessa magnitude à qualquer instante. Caminhamos a passos largos ao encontro de uma realidade pautada pelo desenvolvimento científico e tecnológico e essa conjuntura pode ter pontos positivos e negativos. Depende do caminho que a humanidade escolher. Fato é que se nenhuma medida for tomada nos próximos anos, poderemos sim, ficar reféns das máquinas.