Cidade Invisível retorna com nova promessa: “Histórias Visíveis”

Série de produção nacional retorna às telas e promete representividade indígena nos bastidores e elenco
por
Alice Di Biase
Manuela Mourão
|
17/04/2023 - 12h

Lançada em 2021, a primeira temporada de Cidade Invisível tem como abertura a história do detetive ambiental Eric (Marco Pigossi), que perdeu a esposa em um incêndio enigmático. Em busca de respostas para a catástrofe, logo no início de sua investigação, sofre uma reviravolta ao encontrar um boto-cor-de-rosa morto em uma praia no Rio de Janeiro e, ao levá-lo para casa, percebe que o cadáver do animal havia se transformado em um homem. 

Com este acontecimento anormal, o detetive entra em contato com um mundo paralelo de entidades míticas da cultura brasileira, que vivem marginalizadas e passam despercebidas pela população. Juntos, Eric e os protagonistas das lendas, precisam descobrir o que vem causando tanta dor e sofrimento para essas personalidades tão importantes para a cultura e o meio ambiente nacional.

Sucesso mundial da Netflix, participando do top 10 de mais de 40 países, a série surpreendeu os produtores com tamanha visibilidade, estourando a bolha nacional e alcançando um parâmetro mundial. A mesma atraiu um enorme público, tratando da riquíssima cultura do folclore brasileiro, que até então tinha pouquíssimo destaque e abrangência no mundo do audiovisual. 

No entanto, a produção sofreu críticas em relação à representatividade e ao modo que as lendas foram retratadas em sua primeira temporada. Ativistas e internautas criticaram nas redes sociais, por exemplo, a ausência do protagonismo indígena na trama, que apesar de retratado por meio das lendas, personagens de maior destaque como Cuca, Iara e Saci; foram todas vividas por atores brancos e negros. Outro aspecto também criticado pelo público foi o cenário da série, situada no Rio de Janeiro, que gerou polêmica, pois a maioria dessas lendas têm como local sagrado a floresta Amazônica.
 

Eric e sua filha Luna
Eric e sua filha Luna na segunda temporada de Cidade Invisível. Reprodução: Netflix.


Criada por Carlos Saldanha, a segunda temporada de Cidade Invisível estreou no último dia 22, dois anos após o lançamento da primeira etapa. Com mudanças de cenário, novos personagens e mais destaque à herança indígena, o retorno da série traz consigo o peso das expectativas do público no andamento da trama, com maior destaque para os povos originários. 

Antes mesmo do lançamento da nova temporada, era possível notar aparentes mudanças no modo em que o seriado iria abordar as espiritualidades indígenas e a representatividade. A produção conta com mudanças no elenco e bastidores, como a colaboração de Graciela Guarani, ativista guarani-kaiowá e cineasta que participou da direção de alguns dos novos episódios. Também com a atuação da indígena multiartista Zahy Guajajara, que protagonizou o enredo dos novos episódios.  Além disso, a forte campanha nas redes sociais da Netflix, com vídeos e posts com a hashtag #HistóriasVisíveis, colocou em foco diversos povos indígenas, suas culturas e línguas.
 
A continuação da série gira ao redor da busca de Luna (Manu Dieguez), acompanhada por Inês, a Cuca (Alessandra Negrini) e por seu pai Eric, que teve um final incerto na primeira temporada. Após dois anos desaparecido, Inês e Luna partem para Belém, seguindo um sonho da menina, que indicava o paradeiro do pai. 

Paralelamente à procura por Eric, surge na trama a problematização do garimpo ilegal na Amazônia, e conhecemos novas personalidades do folclore, como a Mula sem Cabeça, Lobisomem, Matinta Pereira e a Cobra Honorato - todos dedicados à proteção da mata. Eventualmente, as histórias se entrelaçam e Luna se encontra dividida entre o desejo de salvação de seu pai e a necessidade de proteção de um santuário amazônico contra a exploração. Mas, acima de tudo, está nas mãos de Luna a proteção das entidades da mata. 

Image: Divulgação Lollapalooza
Luna e Cuca em busca de Eric. Imagem: Netflix

Em entrevista exclusiva para a AGEMT, Mirna Nogueira, roteirista-chefe da série, conta um pouco sobre a criação da segunda temporada. Para ela, as críticas recebidas foram absolutamente pertinentes e importantes, e a pressão ajudou muito a mudar a forma de abordar as lendas e como entendê-las. 

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Mirna Nogueira, roteirista-chefe de Cidade Invisível. Imagem: AGEMT

“Não é que a primeira temporada não teve consultoria, ou que só deixou-se passar batido. Especialistas em cultura indígena acharam ok. Só quando vieram lideranças indígenas questionar alguns momentos da temporada é que os próprios consultores admitiram o erro. Para a 2 temporada, conversou-se com muita liderança indígena, o que atrasou o processo de escrita”. 

Mirna conta que a grande dificuldade é não existir um lugar para “tirar a prova” das lendas, ou que diga exatamente como ela é contada, já que cada cultura conta e interpreta esses mitos de um jeito específico. E explica que, para os povos originários, as lendas vão além de só um folclore, para eles: “as lendas simplesmente são”. Ou seja, do ponto de vista dos povos nativos, as histórias têm início e fim nelas mesmas, existem sem questionamento ou necessidade de provação. 

Ao ser perguntada sobre o processo de casting, a roteirista disse que, apesar de não ter acompanhado tão de perto, sabia que foi buscado no país inteiro atores e atrizes indígenas para os papéis dos novos personagens. 

Já sobre as críticas feitas ao lugar da gravação, a roteirista diz que não viu tanta relevância: “Eu não vejo tanto a coisa do lugar e da cidade, porque acho que é um conceito da série, ‘Cidades Invisíveis’. E o folclore em si, ele é nacional, isso poderia acontecer em qualquer lugar, tanto que a série mudou de cidade. A proposta é que cada temporada seja em uma cidade diferente.”

 

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Débora, antagonista da temporada. Imagem: Netflix

Mirna fala um pouco também sobre a abordagem ambiental. “Quando a gente começou, o garimpo não era tema central. A gente passou por desmatamento, passamos pelas águas e tudo mais, mas o que aconteceu foi que, enquanto a gente tava fazendo, os ataques aos Yanomamis não paravam de crescer. E aí, o dia que a gente realmente falou ‘chega’ e trouxemos a temática para dentro, foi quando duas crianças foram sugadas por um equipamento de garimpo.” Foi então que a roteirista percebeu o tamanho do impacto que o garimpo ilegal tinha na vida dos povos originários. 

Ao resolverem abordar esse tema, as conversas com os consultores, de maioria lideranças indígenas, trouxeram experiências traumatizantes com garimpeiros em suas terras, sem cerimônia, como se fosse algo rotineiro e completamente comum. Muitas dessas contribuíram não só como inspiração para a narrativa da nova temporada, mas também com a denúncia que a série propõe. Assim, trazendo a valorização do aspecto social e a conscientização popular sobre as invasões garimpeiras. 

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Garimpo apresentado durante a série Cidade Invisível. Imagem: Netflix

Por fim, sobre os motivos para assistir a série, Mirna responde de maneira precisa: “Para valorizar o que é nosso, né? Só porque é brasileiro, de cara, assiste". A roteirista argumenta que a população brasileira muitas vezes tem síndrome de “vira-lata”, isso é, o hábito de enaltecer apenas o estrangeiro, desvalorizando produções nacionais, e que deve-se combater a monopolização do audiovisual: “Com a série, nas redes sociais vi muita gente falando ‘pô, que orgulho de ser brasileiro’ e isso é muito importante pra gente, o brasileiro paga muito pau pros gringos e se esquece da riqueza que temos aqui.”

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