Por Giulia Pezarim e Julia Cachapuz
Viver tem cheiro. Também tem som, tato, visão e sabor.
Isso não significa que a falta de um sentido, como a incapacidade de enxergar, anule a vida. Às vezes, inclusive, o "não ter" pode ser ponto central de uma narrativa; por exemplo: há mais de um ano, a presença ou ausência de olfato e paladar ganhou status de bom ou mau presságio, respectivamente.
Histórias interessantes podem ser inspiradas pelos sentidos. Já os sentidos podem ser estimulados por ambientes interessantes. Dona Maria vive em um deles.
Seu plano de fundo é São Bento do Sapucaí, uma cidadezinha montanhesca localizada na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, onde outono e inverno são marcados por duas coisas: o frio intenso e a colheita de pinhão.
Já Maria é plano de fundo para alguns moradores da estrada do Paiol, que de março a agosto podem observá-la subindo a montanha todos os dias, logo cedo. Os que nos cederam entrevista a conhecem como "senhora do pinhão" ou "velhinha do pinhão", sem saber que, na verdade, ela tem 52 anos.
A aparência de Dona Maria facilmente se confunde com a de alguma idosa do cinema japonês: ela é pequena e robusta, usa roupas quentes, discretas e largas, cobre sua cabeça com um pano cinza, e carrega nas costas um grande saco de pano, que começa vazio, na subida da estrada, e termina cheio, na descida, perto da hora do almoço.
Seu trajeto é sempre o mesmo: parte do pequeno aglomerado de casas onde mora, na base da montanha, passando por uma igreja minúscula, em frente ao velho bar (que em qualquer outra hora do dia estaria cheio de homens de meia idade usando chapéu). Depois segue subindo.
O percurso de Maria é uma cena de sentidos: pássaros cantam nas árvores, cachorros latem nas casas; o cheiro de orvalho exala do mato; o gosto da própria boca, ficando seca do esforço para seguir caminhando.
Eventualmente, a dona-mulher chega no acampamento de férias do Paiol Grande. A placa diz: "vai valer por toda vida". Ali começa a área dos grandes terrenos, onde crescem as araucárias, árvores de pinhão.
É nesse local que faz seu sustento, silenciosamente pulando cercas para catar o máximo de pinhões que conseguir (ela os venderá depois, em latas de 18L, por 35 reais cada). Se não se deparar com nenhum proprietário passando as férias no interior (ou algum cachorro de estimação desse proprietário), teve um dia de sucesso.
Normalmente tudo dá certo, e a mulher desce o Paiol com o saco cheio de sementes e o corpo sem grandes emoções. Uma vez deu azar, precisando correr de um engenheiro de São Paulo, que tem casa na região.
Dona Maria é séria e fala baixo, para dentro. Nos diz que tem concorrentes: "o moço que trabalha na dona Marie também cata [pinhão], ele e os filho" (Marie, francês para Maria, é o nome da proprietária estrangeira de um pequeno chalé na região).
Para deixar claro que não é a única catadora da área, comenta que há outros até mais velhos que exercem a mesma função: "tem gente nos 60, 70 ano que cata". Por sorte, há pinhão de sobra em São Bento do Sapucaí (dá para ouvir as pinhas caindo de araucárias em certa frequência).
Maria mora com o irmão, Juvenal, que também colhe sementes. Com eles também vive a filha da catadora, que estava grávida quando a mulher foi entrevistada, em março. O parto era previsto para abril.
Depois do almoço, os irmãos preparam as latas de pinhão para venda. As pessoas vêm de Santana ou "de fora" (não especificado) para comprar o petisco.
Além de semente da araucária, pinhões são a parte comestível da pinha. Podem ser preparados de várias maneiras, contanto que não falte tempero, porque seu gosto é um pouco fraco.
Para a catadora, também são sua principal fonte de renda nos meses de março a agosto: "ajuda muita gente, catar pinhão. Muita gente compra". Quando não é época de colheita, Maria vive de bolsa família.
Segundo o site da Caixa Econômica Federal, uma família em situação de pobreza pode acumular até 5 benefícios por mês, quando há gestantes ou crianças de 0 a 15 anos no núcleo. O valor de cada benefício é de R$ 41,00 , podendo chegar a R$ 205,00 no total.
Maria vende 6 latas de pinhão por R$ 210,00.
Este texto foi ilustrado com imagens autorais de São Bento do Sapucaí misturadas com personagens de Hayao Miyazaki, do Studio Ghibli. O estúdio de animação com frequência inclui mulheres idosas em suas histórias; estas costumam ter cenários naturais, fazer alusões aos sentidos e registrar cenas cotidianas.