Por Júlia Polito
Em Pinheiros, na cidade de São Paulo, João Vittor vive em um apartamento que é automatizado. Sensores ajustam a iluminação conforme a hora do dia, cortinas se abrem com comandos, assistentes de voz controlam aparelhos e robôs percorrem o chão cuidando da limpeza. Cada detalhe parece antecipar suas necessidades, do café da manhã à preparação da sala para o trabalho remoto. Mas, apesar de toda essa tecnologia, o jovem nunca imaginou abrir mão de uma vida sem Lurdes, a senhora que cuida da casa, o viu nascer e acompanha a família há mais de vinte anos. Para ele, a presença dela representa mais do que cuidado, é um vínculo afetivo que nenhuma máquina consegue reproduzir. Ele lembra de chegar da escola e encontrar a senhora organizando as suas coisas, garantindo que cada detalhe estivesse pronto, cada espaço cuidado, cada tarefa cumprida com uma atenção silenciosa.

O laço entre os dois foi se fortalecendo com o passar dos anos, ultrapassando a relação de trabalho. Quando João concluiu o ensino médio, ela fez questão de estar presente em sua formatura. A senhora o viu crescer, acompanhou cada fase de sua vida e, naquele dia, emocionou-se ao vê-lo subir ao palco para receber o diploma. Para João, a presença dela ali simbolizava não apenas o carinho, mas a cumplicidade construída ao longo de décadas, uma espécie de segunda família que se formou em gestos, histórias e afeto compartilhados. Hoje, mesmo com a casa automatizada, esse cuidado permanece, e João sente que a presença de Lurdes transforma a casa em um lar, mantendo vivos os hábitos, lembranças e histórias que carregam décadas de convivência. Desde que se formou em Tecnologia da Informação, o jovem decidiu aplicar seu conhecimento em automação residencial. Ele descreve a satisfação de chegar em casa e perceber que a iluminação, a temperatura, as cortinas e até os aparelhos de som já se ajustaram automaticamente. O robô aspirador percorreu todos os cômodos enquanto ele estava fora, e o assistente virtual enviou lembretes de tarefas e compromissos no celular. Para ele, a tecnologia é prática, eficiente e intuitiva, mas reconhece que tudo isso ainda carece de percepção humana. A automação executa tarefas mecânicas, mas não observa detalhes que mudam a experiência da casa, como um objeto fora do lugar, uma planta que precisa de cuidado ou pequenas alterações na rotina. Lurdes, enxerga o que o sistema não percebe, e age com sensibilidade, antecipando necessidades e solucionando problemas antes que se tornem evidentes.
A rotina diária da casa combina tecnologia e cuidado humano de forma complementar. Pela manhã, ela prepara o café, organiza a cozinha e arruma a mesa, enquanto a casa ajusta a temperatura e a iluminação de acordo com o horário. Durante o dia, João trabalha em seu computador, enquanto as automações da casa funcionam. Ainda assim, são os gestos que definem o ritmo do lar. Ela percebe quando um detalhe da casa precisa de atenção, quando alguma encomenda chegou e deve ser conferida, ou quando algo fora da rotina precisa ser ajustado. Sem ela, a casa seria eficiente, mas fria e impessoal, sem a dimensão humana que transforma uma residência em lar.
O avanço da automação doméstica reflete uma tendência mais ampla que tem impactos profundos no mercado de trabalho brasileiro. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, o emprego doméstico formal no país caiu 18,1% entre 2015 e 2024, o que representa uma perda de cerca de 300 mil vínculos empregatícios, passando de 1.640.609 para 1.343.787 registros. Esse cenário se desenha num contexto mais amplo de insegurança para muitas trabalhadoras domésticas, especialmente as mais vulneráveis: a maioria são mulheres (89% dos vínculos formais em 2024), muitas delas já em faixa etária mais alta, 45% têm 50 anos ou mais. A automação tende a reforçar uma das dinâmicas que já pressionam esse segmento: menos trabalhos formais, maior risco de descarte e menor valorização social, abrindo um dilema sobre como combinar progresso tecnológico com justiça social no lar da população.
A tecnologia pode automatizar tarefas, mas não tem memória emocional nem vínculo com a história da família. Lurdes, por outro lado, mantém viva a memória do lar, garantindo que cada canto continue carregando afeto, cuidado e atenção. João também percebe que a automação trouxe mudanças na rotina dela, liberando-a para tarefas mais complexas e estratégicas. Com os sistemas inteligentes cuidando das coisas mecânicas, ela pode focar em organizar detalhes da casa, preparar refeições com mais atenção e cuidar de aspectos que exigem percepção e sensibilidade. A experiência do jovem demonstra que casas inteligentes não precisam eliminar o humano, mas podem coexistir com ele. A tecnologia libera tempo, simplifica tarefas e proporciona conforto, mas ainda depende da inteligência emocional e da experiência de pessoas como Lurdes para que o lar funcione de forma completa. Ele relata que cada gesto da senhora representa atenção e cuidado que a tecnologia não consegue alcançar, desde pequenos ajustes na organização até perceber sinais não verbais da família. Essa convivência entre humano e máquina reflete a ideia de que o futuro da automação deve valorizar o papel de quem traz sensibilidade, memória e afeto para o espaço doméstico.