Caronte e a sociedade alexandriaca do centro de São Paulo

Uma aventura pelo mundo dos Sebos.
por
Julia Cachapuz e Giulia Pezarim
|
24/06/2021 - 12h

Por Giulia Pezarim e Julia Cachapuz

 

 

 

Sociedades secretas são o que há no momento, independente de estarem entre os trending topics de alguma mídia social, ou não. Pouco importa o ano, o tempo, qualquer que sejam as condições de temperatura e pressão... O assunto “sociedade secreta” sempre vai aguçar a curiosidade até do mais cético ser humano. A aura mitológica, as imensas teorias que circulam nos lábios dos mais ávidos especialistas em teorias da conspiração, o frenesi da dúvida acerca de suas veracidades – e existências, para além de uma histeria coletiva (ou não...) – tiram qualquer um do prumo. O que fazem os maçons? O que será que significa a tão inacessível “filosofia pura da libertação humana”, carro chefe da Ordem Rosa Cruz? Como são formados os acervos que abrigam décadas e muitas vezes séculos das mais diversas sabedorias que formam os tão intrigantes e amados.... Sebos?

A sociedade alexandríaca do centro de São Paulo, conhecida popularmente pelo nome de “Sebo”, é de fato um ponto muito único e até característico da “Selva de Pedra” brasileira. Frequentada pelos mais diversos perfis, esses locais reúnem centenas de histórias em milhares de páginas de livros, em um mar de fileiras de prateleiras, que parecem ser intermináveis. De Nabokov à biografia do famigerado youtuber Felipe Neto, dentro do que parece ser uma singela e pequena casa, um sebo qualquer te estende a mão, logo na porta de entrada da instalação, e te leva em uma jornada infinita pelo conhecimento. 

O responsável por revelar alguns dos segredos dos Sebos e trilhar uma caminhada de mais ou menos três horas por algumas das singularidades apresentadas pelos mesmos é Pedro, um sujeito de 50 anos – 25 de cachaça e outros 25 de dívida, como o próprio define. Ele caminha pelos corredores de seu estabelecimento usando dreadlocks nos cabelos, é pai de duas crianças pequenas que, em meio ao caos (o)culto do Sebo “Esquina Cultural/Megaleitores/Feirão do Vinil”, assistem tranquilamente a desenhos infantis na tela de um computador colocado cuidadosamente sob uma bancada de madeira coberta por livros. 

Pedro, usando papete em um frio de 17 graus, e bermudas fazendo par com uma camiseta razoavelmente larga, conta que não entrou para universo dos sebos paulistanos porque quis. Bem da verdade, foi quase arrastado pelos cabelos para participar desse ramo que ele mesmo define como “uma doença”:

“Comecei e nunca mais parei. Nessa brincadeira se foram pelo ralo cinco casamentos.”, conta ao lado das crianças que não tiram os olhos do desenho animado. “Ah, claro, né? Elas [suas esposas] se irritavam com o quão apegado eu sou ao sebo, e me mandavam escolher: ou elas, ou os livros. Parô, né? A resposta é bem óbvia...”

Há muito tempo – tanto que ficou indefinido ao longo da entrevista -, Pedro foi despejado da casa onde vivia. Não quis detalhar demais a situação, ou algum dos porquês que levaram a situação, mas fato é que ocorreu e quando se passou o evento, o homem se viu na rua, ao lado de uma pequena porção de livros, a qual decidiu dar adeus, sem ao menos olhar para trás. A ideia de começar um Sebo próprio se deu ao vender um livro muito antigo, de um autor “clássico” (não citado pelo mesmo) à uma senhora que caminhava pelas ruas de São Paulo em um dia abençoado. Segundo o Caronte do centro de São Paulo, a coadjuvante da narrativa lhe deu um cheque de R$ 200,00 pela obra, que, no final, foi generosamente doado a um colega próximo de Pedro – o discípulo mais caótico e subversivo de Karl Marx. E, desse modo, absurdamente esculpido pelo destino, sua jornada (ou psicose) começou.

Quase saltitando de um lado para o outro, em um espaço surpreendentemente afunilado, Pedro conta que há na ideia fundamentada pelo instinto de sobrevivência, também uma vontade revolucionária de romper com os ciclo de compra e venda rápida e simplista dominado por grandes empresas como Amazon e o próprio Mercado Livre, que hoje batalham em solo brasileiro para quem dominará o setor do modelo de “fullfilment” das terras tupiniquins (uma modalidade de logística onde grandes nomes, por exemplo a grande multinacional comandada por Jeff Bezos, assumem as burocracias da venda de outras lojas alojadas em seu website, ficando responsável, assim, por armazenar, empacotar e enviar as mercadorias oferecidas aos clientes no “Web Market”). 

“As pessoas perderam os antigos hábitos e substituíram por novos hábitos, e os novos hábitos acabaram com esses velhos hábitos.” Declara Pedro, sobre a batalha Grandes Empresas Vs. Pequenos Estabelecimentos, frente ao fluxo razoavelmente conturbado daquela tarde. 

Sem subsídio do Estado, Pedro ainda afirma, discorrendo sobre a complexidade de se manter a profissão de livreiro/dono de sebo de pé é um exercício de resiliência que muito se sustenta em decorrência do estilo de vida dos clientes fregueses de cada estabelecimento vintage – repare que há diferença entre as palavras vintage e retrô: a primeira se refere a itens realmente antigos, oriundos de décadas passadas, por alguma razão preservados até os dias atuais. Já o retrô diz respeito a peças que são inspiradas em utensílios criados nos tempos mais antigos, são reproduções feitas pelo efeito descolado que causam na opinião pública. Os sebos também resistem a partir do choque cultural: de acordo com o Caronte responsável por guiar essa matéria, muitos pais e mães levam os filhos para passearem pelas longas estantes carregadas de livros e discos de vinil com a finalidade de ensinar aos pequenos como se escutava música, ou como se assistia filmes (no caso das fitas cassete, por exemplo), quando seus progenitores eram jovens. 

“As vezes eu fico até espantado, porque isso é parte do meu dia a dia. Sempre aparece um pai com os filhotes dizendo ‘Olha aqui! Isso aqui é um disco, é assim que eu ouvia música quando era jovem’.”, confessa. 

Ainda discorrendo sobre a falta de auxílio governamental para a manutenção e permanência dos sebos, Pedro explica que os pequenos-grandes estabelecimentos – existem sebos históricos na cidade de São Paulo viraram pontos turísticos a serem visitados durante a estadia de turistas na maior cidade da América Latina – sobrevivem também pela forte aliança entre os livreiros que residem no centro histórico da cidade. 

“Eu falo que é uma doença, mas na verdade, isso aqui é uma profissão muito bacana. Estamos sempre aprendendo uns com os outros. Vira e mexe a gente briga, já briguei muito com o Ali, que é o meu vizinho aqui e também dono de sebo, mas tudo sempre termina em troca de livro e um pouquinho de cachaça.”, conta.

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