Bruxaria busca seus caminhos no Brasil

Jeff e Lucas cultivam expressões culturais nacionais para dar forma a uma espiritualidade ainda muito espelhada em padrões eurocêntricos
por
Ligia de Toledo Saicali
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20/12/2021 - 12h

 A crença em forças ou entidades metafísicas que expliquem a origem e a organização do mundo sempre se mostrou presente no curso da humanidade. Ainda anteriores às grandes religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo), as mitologias politeístas foram as pioneiras na construção da fé de diversos povos, como gregos, romanos, egípcios, nórdicos, entre outros. Além disso, o hinduísmo, as espiritualidades indígenas, bem como as de matriz africana, são práticas que perduram e resistem ao apagamento cultural, principalmente pela ocidentalização cristã.

 

  Contudo, a bruxaria, paganismo, ou “antiga arte”, é uma das espiritualidades mais duradouras e exploradas no sentido cultural (e, até mesmo, comercial). Com o passar do tempo, as práticas bruxas foram se reinventando e sendo interpretadas de diversas maneiras, fosse de modo ritualístico e sagrado, ou preconceituoso, como uma “ameaça” à ordem social, principalmente durante a Idade Média. Inúmeros “subversores”, em especial, mulheres curandeiras e cientistas, foram acusados de bruxaria; estima-se que 50 mil pessoas foram condenadas à morte até o século XVIII por essa justificativa.

 

  Na contemporaneidade, a bruxaria ganha uma nova roupagem. O escritor, antropólogo amador e bruxo ocultista Gerald Gardner (1884-1964) foi um dos grandes responsáveis pela retomada das práticas bruxas de maneira popular e um dos pioneiros da principal vertente moderna, a Wicca. Em 1986, Raymond Buckland (1934-2017) foi o primeiro bruxo a se considerar como wiccano publicamente, e escreveu “O Livro Completo de Bruxaria de Raymond Buckland” baseado em seus estudos com Gardner, uma das maiores obras do neopaganismo, sendo a líder de vendas na Amazon dentro da categoria “Wicca, Bruxaria, Religião e Espiritualidade”.

 

  No Brasil, um país predominante cristão, com um notável histórico de intolerância religiosa (principalmente com crenças de matriz africana), a discussão acerca da bruxaria cresce, mas ainda com pouco espaço. A banalização dos ensinamentos bruxos também ocorre e se mescla com a construção do “jovem místico”, perdendo seu valor político e social, tão evidente em épocas mais remotas. A positividade tóxica com ausência de recortes sociais e o falso transcendentalismo buscam esvaziar ainda mais os princípios da antiga arte e incorporá-la ao atual mundo capitalista.

 

  Na contramão dessa tendência, Jefferson Paixão e Lucas Souza trabalham para desconstruir (e reconstruir) concepções sociais em torno da bruxaria e informar de modo responsável e acessível através do perfil conjunto no Instagram @_bruxedo. Jeff e Lucas - como são conhecidos na plataforma -, estão juntos há dez anos e trazem ao público um neopaganismo que considera questões sociopolíticas sob a perspectiva de um casal gay, interracial e periférico. Além do perfil, o Bruxedo (como a dupla também é nomeada) oferece consultas de tarot, produzem música com temáticas místicas para as plataformas digitais e recentemente fizeram uma parceria com a editora de livros “DarkSide Books”.

 

AGÊNCIA MAURÍCIO TRAGTENBERG - Vocês podem contar um pouco da trajetória de vocês, sobre os caminhos que os levaram até aqui?

 

JEFF E LUCAS - Nessa nossa jornada, a gente tem muito de arte, ela sempre fez parte da nossa vida. E em uma questão de espiritualidade, a gente se encontrou na bruxaria, que entendemos como uma forma alternativa, porque no passado ela foi conhecida como a “antiga arte”, a grande arte. A bruxaria fala sobre o cuidado com a terra, sobre a manipulação de ervas, sobre muitas coisas que, no passado, foram conhecidas como arte. Nem sempre essa foi a forma de expressarmos nossa espiritualidade. Nós éramos cristãos no começo, missionários da Igreja Protestante, que foi onde a gente se conheceu enquanto melhores amigos, e fazíamos parte de uma companhia de artes que realizava projetos sociais. Desse diálogo, desse aprofundamento da nossa relação, começamos a descobrir a nossa sexualidade e, dentro da religião que a gente tinha, não fomos abraçados. Então, começamos a buscar formas de conhecer e construir nossa própria identidade e isso foi levando a gente para outros caminhos e outras possibilidades de ser, enquanto ser humano, enquanto pessoa e na nossa espiritualidade. Nessa busca, a gente se deparou com a bruxaria, e o que chamou muito a nossa atenção é que existe um texto sagrado chamado “Carta da Deusa”e em um trechinho é dito que “todas as formas de amor e prazer são iguais à Ela”. E aí a gente se sentiu abraçado, acolhidos, realmente representados. Nós somos um casal LGBT, interracial, periférico e dentro de todos esses recortes, a gente encontrou na bruxaria o reflexo de quem somos.

 

AGE - Vocês lançaram um álbum de músicas recentemente, em meio à pandemia. Como foi a produção, desde o financiamento até as composições?

 

J&L - Há processos para criar uma bruxaria brasileira, sem ser o reflexo de uma bruxaria europeia, eurocentrada. Ela é um movimento que acontece em todo mundo. O Brasil  ainda é muito carente nessa questão de músicas, conteúdos literários, bebemos muito de fora para construir aqui dentro. Aí a gente entendeu que havia a possibilidade de contribuir e criar algo para a bruxaria, que nos abraçou. A forma de retribuição foi entregar a nossa arte. Então, eu, enquanto cantor, e o Lucas, enquanto músico e produtor, a gente se uniu, mais uma vez, para construir esse álbum. Tem uma sonoridade bem moderna, a gente traz ritmos e instrumentos que façam com que a gente enxergue essa espiritualidade no dia a dia, não só em um momento ritualístico e litúrgico. Todo processo de criação, composição, melodia, masterização, captação vocal, foi o Lucas quem fez, e eu tive minha contribuição vocal e escrita das letras, tudo isso dentro de casa. Então foi um processo bastante desafiador, a gente não podia usar recursos de estúdio. Tivemos que nos reinventar, se profissionalizar e criar esse álbum do zero, materializar o projeto quase como uma mágica.  

 

AGE - Existem muitas diferenças entre a bruxaria antiga e a sua releitura moderna?

 

J&L - Falando de práticas, a gente tem a bruxaria moderna enquanto uma referências do paganismo antigo, resgatando esses caminhos ancestrais, mas ressignificando para o nosso tempo. Então esses saberes rompem com a ideia de religião e espiritualidade patriarcal, ainda muito fortalecidos hoje em dia, enquanto retomamos a herança ancestral. A gente tem, por exemplo, a ideia de bruxaria como respeito aos ciclos da natureza. O paganismo vem do povo do campo, um povo que vivia longe da sociedade que estava sendo criada e desenvolvida em tempos passados. Eles tinham esses saberes, a conexão com a terra, na questão do plantio, colheita, na observação do Sol, da natureza, desses ciclos que eram a totalidade da vida. Aí temos essa transição de feudalismo para capitalismo, com uma sociedade no avanço científico, com maiores poderes do Estado e o fortalecimento da Igreja enquanto religião dominante. A bruxaria é o rompimento desses padrões e a busca desses saberes para muito antes desses processos, com uma observação de como era a vida daquele povo, sua organização social, o cuidado ambiental, que a gente traz para esse momento. Em relação às práticas, há mudanças, mas a gente mantém a simbologia. Naquele tempo, a rotina de vida era outra. Hoje, temos pautas emergenciais que são diferentes daquela época. Estamos ressignificando tudo isso.

 

AGE - Diante do processo de urbanização e o afastamento humano da natureza, como fica o exercício da bruxaria, em que a conexão com a Terra é prejudicada?

 

J&L - Não temos essa separação entre eu, bruxa e espiritualista, e eu, cidadão e pessoa. A gente vive nesse mundo capitalista que realmente não enxerga a natureza como sagrada, divina, e o ser humano não se enxerga como parte dessa natureza. Existe um Ocidente muito fundamentado numa estrutura religiosa que diz que o homem deve dominar a natureza, que ele é superior a ela. Nesse estado de superioridade, ela é colocada como nossa serva, sendo que é totalmente o contrário. A bruxaria entende o planeta como a “Mãe Terra”, sendo o próprio corpo da Deusa. Então, quanto mais eu vou utilizando esses recursos, explorando, eu estou ferindo o corpo da divindade que eu cultuo, o que acaba sendo contraditório. A gente traz, como criadores de conteúdo, a espiritualidade dentro de recortes sociais, movimentos políticos, e, dentro dessa militância, trazemos pautas como essa. Se a bruxa se conecta com o poder da Terra, tem a conexão com os cristais, com as ervas, incensos, então ela também tem que cuidar, ser uma zeladora, sabendo ser uma extensão dela. Porque é o nosso lar, que nos comporta, nossa referência de sagrado. Ninguém joga lixo dentro da Igreja, por exemplo, porque é um lugar considerado sagrado. Então, se entendemos que o planeta é sagrado, a gente não vai jogar lixo na rua.

 

AGE - Como é a relação da bruxaria com a ciência?

 

J&L - Em um contexto geral de espiritualidade, essa questão científica é bastante problemática. Quando falamos de caça às bruxas, a gente tem um movimento de inquisição em que, como falamos antes, o Estado comanda, o cristianismo é a religião dominante e a ciência, principalmente a medicina, se fortalece. E esses pilares se unem para minar qualquer outra forma de poder, qualquer outra alternativa a esses poderes patriarcais. A gente tem a bruxa que é a curandeira, que faz os remédios, mas que também sabe fazer o veneno, ou  a parteira, que dá a vida, mas que também exerce as práticas abortivas. Então, é óbvio que existe uma ciência patriarcal, baseada no homem e em todos os processos de controle do corpo da mulher. É uma ciência que desacredita nessas práticas porque elas também refletem a sabedoria feminina, sua independência. Hoje, a gente tem uma ciência que é cética, com uma veia eurocentrada, desacreditada nesses saberes. Porém, a bruxaria não é inimiga da ciência, muito pelo contrário. Quem entende os fundamentos da magia sabe que um bebe da essência do outro, como a Alquimia, conhecimentos relacionados à Química, o aproveitamento de inúmeros pensadores e cientistas. Só que também temos problemas relacionados ao ser humano, de caráter, muitas vezes. Há um charlatanismo que usa do esoterismo, da mística, para se beneficiar, então não dá para falar em um contexto geral. Ainda não há um diálogo, infelizmente. Mas, no nosso caso, a gente mergulha muito na ciência para não se perder no meio do fanatismo, no meio da alienação. Por isso temos nossos estudos, a busca pela formação acadêmica, para podermos conciliar tudo isso.   

 

AGE - A bruxaria tem alguma explicação ou palpite para fenômenos como a Covid-19?

 

J&L - Quando a gente olha para a pandemia, precisamos levar isso sob um viés político, científico, realmente de crise sanitária. Houve uma grande problemática no começo, de discursos elitistas e negacionistas baseados numa posição de privilégio, com muitos dizendo que era uma transição planetária, uma limpeza da própria Terra, respondendo ao mal que o ser humano fazia. Só que o problema de tudo isso é que a maior parte das pessoas que foram afetadas pela pandemia são as marginalizadas, em lugares de vulnerabilidade, periféricas. A gente tem aí um problema estrutural que não deve ser respondido com espiritualidade. A espiritualidade pode se responsabilizar em uma questão humanitária, de comprometimento no âmbito social, com suporte, auxílio a quem precisa. Se a espiritualidade quiser responder a isso, que seja em movimentos de oferecer abrigo, alimentação, cuidados que se movam nesse sentido.

 

AGE - Existe atualmente uma banalização das práticas bruxas, uma leitura de modo superficial?

 

J&L - A gente teve com os "millennials" um movimento que começa a romper com a religião, de entender a espiritualidade fora dela. Tem um desligamento da necessidade religiosa, de nascer dentro de uma religião e entender que ela é a resposta para todas as coisas. Dentro da geração Z, principalmente, existe essa emancipação e ocorre a busca por uma espiritualidade mais objetiva, mais individualizada, baseada no autoconhecimento, dentro de recortes sociais. Porém, o que existe de falha nesse processo é não respeitar as bases, os fundamentos. Então, nós utilizamos os pilares das espiritualidades passadas para conseguir um legado que contribua para as próximas gerações de maneira mais consciente, desconstruído daquilo que é tóxico, daquilo que é destrutivo. Existem, sim, algumas problemáticas. Por exemplo, círculos de sagrado feminino que são totalmente elitizados, voltados para mulheres brancas, cis, heterossexuais, que excluem outras mulheres. Há também os eventos ritualísticos que acontecem em regiões de cenários paradisíacos extremamente caros, com uma falta de acesso a pessoas que estão na periferia, que não tem recursos e batalham no seu dia a dia para conseguir um alimento ou pagar um aluguel. Tem o charlatanismo de pessoas que se auto proclamam terapeutas, sacerdotisas, que acabam tirando o cuidado profissional, ficando apenas com a questão do dinheiro e do poder. Quando a gente fala de esotérico e místico, já vem junto essa ideia de charlatanismo. A gente olha com desconfiança. Se você vai passar por uma consulta de tarô, a primeira coisa que pensa é “vamos ver se vai dar certo”, por conta dessa falta de base, profissionais, estrutura e pesquisa. Temos, sim, uma grande problemática de negacionismo, de pessoas dentro dos seus privilégios acharem que, com boas vibrações e positividade, todos os problemas do mundo vão se resolver. E isso tá muito além.

 

AGE - Como alguém que se interessa pela iniciação na bruxaria pode buscar fontes seguras de conhecimento?

 

J&L - Eu acho que, como em qualquer religião, a gente começa olhando para a vida de quem se propõe a estar na frente de tudo isso. Não é só sobre o fato de eu falar da minha espiritualidade, mas de quem eu sou no meu dia a dia, quais são os meus posicionamentos, quais são as minhas ideologias, o que eu defendo e acredito. Precisamos observar de forma humana, e não como super-herói. A gente só conhece o padre naquele momento religioso, olhamos para pastores somente durante o culto. Mas eles não são somente aquilo, é apenas uma fração. Em primeiro lugar, a gente vai olhar para a questão de caráter. Em segundo lugar, precisamos sempre pesquisar, fazer a busca, ter materiais de referência. Quando falamos de internet, precisamos observar os conteúdos, ver quem são esses criadores, os influenciadores que falam sobre isso. Quanto aos livros, a gente vai para as bases, a bibliografia, as fontes, autores e autoras. A bruxaria, assim como nas outras espiritualidades, envolve o processo de sermos eternos aprendizes. Nós temos dez anos de prática e todos os dias descobrimos como não sabemos de nada, que ainda temos muito o que aprender. A gente tem, sim, a internet, somos uma geração muito informatizada, mas é preciso ter esses cuidados com a profundidade. Entender primeiro a história, quem são as bruxas, as questões básicas, para depois se aprofundar em feitiços, rituais e etc.

 

AGE - Como vocês enxergam a percepção da bruxaria no Brasil em relação a outros países?

 

J&L - O Brasil é um país que foi colonizado, então trazemos muitas referências de fora, que são supervalorizadas. Temos um histórico de bruxaria, de caça às bruxas, mas a gente sempre se recorda somente da Inquisição ou do caso em Salém. Temos o olhar voltado para fora. Eu, enquanto pessoa negra, escolhi a bruxaria justamente por uma questão de representatividade. Existe um lugar de marginalização e exclusão da pessoa negra, em que ela obrigatoriamente precisa ser da umbanda ou do candomblé, alguma religião de matriz africana. Mas não, a pessoa negra deveria escolher qualquer espaço que ela deseja ocupar, assim como uma pessoa branca. Você não coloca a pessoa branca dentro de uma religião específica porque ela tem esse direito de transitar por qualquer lugar que ela deseja, inclusive dentro da própria umbanda, do próprio candomblé. Eu escolhi a bruxaria para ampliar essas possibilidades, para que as pessoas olhassem para mim e percebessem que ali elas estão refletidas, representadas e seguras. No Brasil, sendo um lugar fundamentalista cristão, a bruxa é o outro, o desconhecido, tudo aquilo que faz parte do ser humano e que ele tenta reprimir. Ela é lasciva, pecaminosa, tudo que o ser humano tem enquanto instinto e natureza, mas que precisa ser anulado. Então, ela é taxada como inimiga. Ainda temos muita discriminação, uma grande intolerância religiosa, um fundamento de livros religiosos que fomentam esse tipo de violência. Não temos praças com fogueiras em que se queimam pessoas, mas temos adeptos de religiões africanas que são apedrejados em público. Não temos os mesmos direitos. Ainda é um cenário em construção, engatinhando.

 

AGE - Quais realizações vocês ainda querem alcançar? Como casal, criadores de conteúdo, músicos…

 

J&L - A gente não tem muito uma separação entre a nossa vida pessoal, do nosso trabalho ou tudo que a gente faz juntos. Então, criamos o Bruxedo como uma identidade que pudesse abraçar todas as nossas possibilidades de ser e nossas manifestações de identidade. A cada momento a gente tá incumbido dentro de um projeto totalmente distinto um do outro. Em um momento estamos focados na produção de um álbum musical, depois a gente tá criando um evento, uma produção de cursos e workshops, depois a gente se envolve com a arte em um sentido artesanal. Atendemos às necessidades da comunidade mística brasileira e nos dedicamos, dentro das nossas limitações, a contribuir com uma iniciativa de fácil acesso à informação, com bases sérias, sólidas, com referências. O que a gente realmente deseja, de todo coração, é a inclusão, essa representatividade. Que a gente continue sendo útil para trazer esse direcionamento para a comunidade que nos abraçou no momento em que precisávamos. E que possamos retribuir abraçando outras pessoas também. 

 

Foto destaque: Patrícia Montrase 

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