Brechós incentivam economia circular na capital paulista

Empreendedores autônomos geram renda e ajudam a promover bem estar de suas comunidades
por
Lucas Gomes
Matheus Marcolino
|
06/06/2023 - 12h

O ônibus para no início da avenida principal da Cohab Juscelino Kubitschek, bairro do extremo leste da cidade de São Paulo. Em frente ao ponto de ônibus fica um posto da GCM (Guarda Civil Metropolitana) e uma praça, lotada de equipamentos de ginástica e brinquedos para as crianças. Ao fundo, é possível avistar a entrada de uma rua.

Com perfil residencial, a rua estreita é parecida com muitas outras da periferia paulistana. Vários botecos, uma pequena vendinha, prédios do antigo conjunto habitacional, e diversas casas - algumas com cachorros latindo no portão. Há uma casa de esquina, no fim da rua, cujo portão está entreaberto. Ela parece estar escondida em meio à simplicidade do local. 

Colado no portão, há um cartaz marrom com um horário de funcionamento: das 10h às 17h, de segunda a sexta-feira. Acima, colorido em azul e vermelho, um banner indica o nome do lugar: “Bazar Emanuel”. A entrada estreita dá acesso à garagem da casa. A primeira impressão é de surpresa com a quantidade de peças de roupa dispostas naqueles poucos metros quadrados; cabides e pilhas dispõem as peças, majoritariamente femininas. Há um balcão, no fundo da garagem; é lá que fica Ana Rosa, a dona do brechó.

Brechó
Entrada do Bazar Emanuel, na Cohab Juscelino Kubitschek. Foto: Matheus Marcolino.

O brechó

Ana demonstra sua timidez, mas não deixa de adotar um olhar de seriedade. Ela conta que comanda o negócio há cerca de um ano e meio, quando decidiu deixar seu trabalho, num hipermercado, após meses afastada por um motivo incomum: uma lesão no pé. “Lá, todos trabalhavam de bota. Como eu machuquei meu pé, não conseguia calçar a bota, e não me deixaram trabalhar de chinelo. Fui afastada e fiquei quatro meses recebendo pelo INSS”, relembra. Com dificuldades financeiras durante esse período, recebeu doações de roupas e decidiu abrir um brechó em sua garagem. Quando foi liberada para retornar ao trabalho, pediu as contas. “Naquele momento, estava faturando [com o brechó] o dobro do que ganhava no hipermercado. Hoje, faturo três vezes mais”.

Ana
Ana Rosa, dona do Bazar Emanuel. Foto: Matheus Marcolino.

Empreendimentos como os de Ana estão ganhando cada vez mais espaço nos bairros. Segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o número de brechós no Brasil cresceu 30,97% nos últimos cinco anos. Só durante a pandemia, o crescimento foi de 11,08%. A maioria dos brechós regularizados são geridos por microempresários individuais (MEI), mas há um número significativo de negócios autônomos e sem registro, sejam eles no interior dos estados ou nos bairros mais periféricos das grandes cidades. 

No Bazar Emanuel, as roupas que serão futuramente vendidas chegam por meio de doações, vindas de pessoas do bairro ou da igreja evangélica que Ana frequenta, em Itaquera. “Às vezes eu chego e as sacolas estão no portão”, conta. Muito religiosa, ela acredita que tudo que acontece em sua vida - como doações massivas que surgem sem explicação - tem um propósito divino. 

A política de preços adotada pelo “Emanuel” é simples: qualquer peça custa um real a quem quiser adquiri-la. Os valores eram ligeiramente mais altos no início do empreendimento, mas uma promoção de fim de ano, com todos os produtos a dois reais, turbinou as vendas do brechó. Ana decidiu manter a ideia de precificação em definitivo, mas com as peças a um real. Ela conta que os valores baixos acabam atraindo mais público do bairro, inclusive pessoas em situação de rua. “Eles vendem o material de reciclagem, conseguem quatro ou cinco reais, e vêm aqui comprar. Se chegar pedindo, eu dou [a roupa]. Mas se chegou para comprar, eu vendo. E se compra, já leva uma marmita (risos)”.

Para Cristina Helena Pinto de Mello, professora de economia da PUC-SP, a estratégia adotada pelo Bazar Emanuel é, primeiramente, uma ação de marketing. “É preciso ver se ela consegue manter essa precificação e se ela consegue não ter prejuízo”, comenta. Apesar disso, este tipo de iniciativa é positiva para a economia local e para a comunidade, já que o dinheiro acaba circulando no bairro e os produtos atendem a uma necessidade dos moradores - a de se vestir. “Permitir que uma pessoa que não tem recurso escolha o que quer vestir é respeitar a individualidade dessa pessoa. O preço bastante possível dá uma oportunidade de escolha que é de muito valor” explica a professora. 

A comunidade

Os brechós são bons representantes da economia circular, que busca quebrar o processo produtivo tradicional da sociedade capitalista, marcado pela linearidade. O tradicional é que a matéria prima seja coletada, e o produto seja produzido, consumido e descartado. Num modelo circular, a ideia é que a fase de descarte seja minimizada, conseguindo aproveitar e reutilizar o produto que viraria lixo. Cristina Helena explica que a circularidade na economia local é importante, pois gera um duplo impacto. “As pessoas que fazem o comércio de roupas nas comunidades estão gerando renda e dando acesso a esses produtos para as pessoas”, afirma.

Fernanda Vianna, coordenadora de Engenharia de Sustentabilidade na FEI, reforça a importância de incentivar uma economia circular nos bairros. Segundo ela, a circularidade é importantíssima para diminuir o consumo de recursos naturais e o descarte de resíduos no meio ambiente. Além disso, os preços mais baixos contribuem para uma visão sustentável: “Você tem que melhorar a vida das pessoas. E qualidade de vida também é sustentabilidade”, afirma.

Enquanto conversava com os repórteres, Ana Rosa se manteve atenta ao movimento da rua. O brechó já não costuma ser movimentado nas tardes de sexta-feira, e uma chuva forte contribuiu para que nenhum cliente chegasse durante a conversa. Do lado de fora, no entanto, a comunidade marcou presença na entrevista. Dirigindo um carro prata, um homem parou seu carro e cumprimentou a empreendedora. Ela conta que, em alguns momentos, homens entram no brechó e arriscam uma ou outra cantada. 

Uma mulher de meia idade também a abordou na entrada do brechó, mas com outra intenção: conversar. Não são poucas as vezes que Ana ocupa tempo ouvindo desabafos de moradores da comunidade - em sua maioria mulheres. Ela acredita que conquistar a confiança dos clientes é uma forma bastante eficiente de fidelizá-los. “Às vezes a pessoa só vem para descarregar, e eu dou atenção. Paro para ouvir as pessoas, e dou conselhos, principalmente sobre relacionamentos. Pelo simples fato de você ouvir, ela sai satisfeita”, conta.

A sensação da proprietária é de que o brechó impacta a comunidade de forma positiva, principalmente em um quesito não tão considerado quando se fala em bairros mais pobres: a moda. Ela acredita que as roupas de seu negócio ajudam a deixar mais belos os moradores da Cohab em que vive. “Muitas pessoas não tinham uma roupa decente para usar, e hoje só usam roupa do brechó. E se vestem bem”.

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Roupas dispostas em cabides no Bazar Emanuel. Foto: Matheus Marcolino.

O empreendedorismo

De acordo com dados do Sebrae, divulgados em 2021, cerca de 9,3 milhões de mulheres são “empreendedoras” no Brasil, número que equivale a 34% dos donos de empresas do país. Se considerado o número de mulheres sem registro, os números podem crescer ainda mais. A professora Cristina Helena afirma que muitas mulheres, em meio às demandas domésticas, não conseguem empregos formais e buscam empreender sem ter de se deslocar - e é aí que surgem muitos dos brechós. “Essas ações conseguem manter a geração de renda sem que a mulher precise abrir mão do cuidado”, conta.

Em relação aos países mais ricos, o Brasil ainda está muito atrasado. Para a professora Fernanda, esse tipo de negócio, que contribui para a circularidade e para a sustentabilidade da economia local, deveria receber mais apoio de políticas públicas, principalmente por meio de incentivos fiscais: “Se o Estado pudesse dar ajuda, aliviar questões burocráticas, dar isenções (...), e se tivesse uma facilitação para esses negócios, que comprovadamente causam bem estar social e econômico na questão ambiental, o mercado se movimentaria ainda mais”, diz.

Enquanto esses incentivos não chegam, Ana promete seguir trabalhando muito. Aos 42 anos, é divorciada e mãe de dois filhos. Ela diz que é dedicada, pontual, e que um dia espera decolar como empreendedora. “Um dia vou ser uma empresária de sucesso. Eu falo para a minha filha. (...) Eu sou a dona do meu próprio nariz.”