Brasil produz menos filmes sobre sua ditadura do que a Argentina e o Chile

O país ainda engatinha em sua produção cinematográfica sobre a ditadura, políticas de memória, incentivo cultural e o peso da anistia explicam essa lacuna
por
Carolina Zaterka
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10/06/2025 - 12h

   Nas últimas décadas, regimes militares latino-americanos foram tema de centenas de filmes. No entanto, a cinematografia brasileira sobre sua ditadura (1964–1985) é bem menor do que a de países vizinhos: a Argentina produziu 608 obras sobre o tema, o Chile 225, enquanto o Brasil soma apenas 189.  

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Gráfico que mostra o lançamento de filmes sobre a ditadura militar por ano no Brasil, Argentina e Chile. Reprodução: Folha de São Paulo 

 

   A Argentina consolidou sua memória no cinema já nos anos 1980. “A História Oficial”, vencedor do Oscar em 1986, foi um marco ao denunciar o roubo de bebês durante o regime. Mais tarde, “O Segredo dos Seus Olhos” (2010) e “Argentina, 1985” (2023) reforçaram esse compromisso com o passado. No Chile, o filme “No” (2012), indicado ao Oscar, dramatizou a campanha contra Pinochet no plebiscito de 1988. Mais recentemente, “El Conde” (2023) satirizou o ditador como um vampiro, inaugurando uma nova linguagem para falar sobre a repressão. 

   No Brasil, apesar de exceções como “O Que É Isso, Companheiro?” (1997), indicado ao Oscar, a produção tem sido menos frequente. O recente “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, sobre o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, trouxe novo fôlego ao tema e conquistou o Oscar de melhor filme internacional em 2025. Ainda assim, trata-se de um caso isolado. Mesmo com a criação da Comissão Nacional da Verdade em 2012, a quantidade de produções permanece modesta. 

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Apresentação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Reprodução: Politize em Agência Brasil 

 

   A diferença entre os países não é apenas estética ou cultural: é política. A Argentina promoveu o julgamento das Juntas Militares logo após a redemocratização, anulou anistias e instituiu centros de memória como o “Espacio Memoria y Derechos Humano’’ (ESMA), incentivando a arte engajada. O Chile, além de criar o Museu da Memória e fomentar cineastas exilados, estabeleceu políticas públicas de apoio ao audiovisual focadas em direitos humanos. Nesses países, a memória virou política de Estado e gerou reflexos concretos no cinema. 

   No Brasil, o processo foi mais lento e contido. A Lei da Anistia de 1979 impediu a responsabilização de torturadores, e o Estado demorou a assumir uma política ativa de memória. A dissolução da Embrafilme em 1990 deixou um vácuo no financiamento do cinema, só parcialmente preenchido anos depois com a Lei Rouanet (Lei Federal de Incentivo à Cultura, Lei nº 8.313/1991) e a Lei do Audiovisual (Lei Federal nº 8.685/1993). Mas tais mecanismos não priorizam temas históricos nem promovem uma política de enfrentamento do passado. Com isso, o cinema brasileiro sobre a ditadura seguiu com apoio pontual e, muitas vezes, iniciativas isoladas e privadas. 

   A escassez de produções é reflexo de um país que ainda não elaborou plenamente seu passado autoritário. Segundo o historiador Eduardo Morettin, “a forma como lidamos com a ditadura interfere diretamente na quantidade e no tipo de obras culturais que surgem”. No Brasil, prevaleceu por décadas uma narrativa conciliadora, centrada na transição pacífica e na reconciliação, que inibiu iniciativas culturais mais contundentes. 

   Contudo, esse cenário pode estar se transformando. O impacto de “Ainda Estou Aqui” foi tão expressivo que falas presentes do filme foram utilizadas por ministros do STF durante o julgamento da lei de anistia. Nessa perspectiva, o STF vai determinar se crimes como o de desaparecimento forçado podem ser julgados com força retroativa, mesmo que a anistia esteja em vigor. Se houver aceitação, pelo menos 18 situações processuais paralisadas, até esse momento, vão a julgamento. A arte, mais uma vez, reacende um debate adormecido. 

   A experiência de Argentina e Chile mostra que o cinema pode ser uma ferramenta poderosa de construção da memória coletiva. A arte faz, com toda certeza, com que as pessoas olhem o mundo com outros olhos, criem empatia e ajudem a sociedade a entender e confrontar traumas históricos. Ao contrário, o silêncio e a omissão cultural podem alimentar o esquecimento, ou até mesmo o “revisionismo”. 

   Hoje, o Brasil vive um momento decisivo. O sucesso internacional de um filme que mergulha na dor de uma família destruída pela repressão sugere que o público está pronto para olhar o passado nos olhos. Resta saber se o país, como Estado e como sociedade, está disposto a seguir esse caminho, com mais história nas telas, e mais memória no presente. 

 

 

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