O debate sobre o racismo estrutural na segurança pública é um dos principais assuntos da atualidade. De janeiro a maio de 2020, 442 pessoas foram mortas pela polícia militar no estado de São Paulo, o maior resultado desde 2001, demonstrando um aumento alarmante na letalidade em ações policiais. O aumento registrado no primeiro trimestre de 2020 indica que em 64% das mortes, as vítimas eram negras. Em comparação, no mesmo período houve queda no número de crimes violentos durante a quarentena causada pela Covid-19. Isso demonstra que houve redução nos registros de crimes contra o patrimônio e o aumento de assassinatos cometidos pela polícia. Qual é a justificativa para isso?
No ano em que o movimento Black Lives Matter alastrou pelo país, a violência da polícia brasileira contra pessoas negras atingia o seu número recorde. Os números são oficiais e comprovam que a violência policial tem seu alvo certo.
Rio de Janeiro – O estado que mata nossos filhos
Chacina de Costa Barros
28 de novembro de 2015, Costa Barros – Rio de Janeiro
No dia 28 de novembro de 2015, Wesley Castro, Roberto Silva, Cleiton Corrêa, Wilton Esteves e Carlos Eduardo, todos com idades entre 16 e 25 anos, saíram para comemorar o primeiro emprego de um deles, em Costa Barros, Zona Norte do Rio. Na volta, foram surpreendidos quando o carro onde estavam foi atingido por 111 tiros. Os disparos foram realizados por quatro policiais que estavam dentro de uma viatura, que alegaram a troca de tiros com os jovens, porém a perícia descartou a hipótese apresentada.
Em julho de 2016, a mãe de Roberto, o jovem que havia conseguido seu primeiro emprego, morreu aos 44 anos em decorrência da depressão. Ela foi internada após uma parada cardiorrespiratória e tinha quadro de pneumonia e anemia.
Caso Marcos Vinicius
20 de junho de 2018, Complexo da Maré – Rio de Janeiro
Durante uma ação da Polícia Civil e o Exército, 7 pessoas foram mortas na zona norte do Rio de Janeiro, no dia 20 de junho de 2018. Uma das vítimas, Marcos Vinicius da Silva, adolescente de 14 anos, atingido por uma bala perdida dentro de uma escola, no Complexo de favelas da Maré.
"A culpa é desse Estado doente que está matando as nossas crianças com roupa de escola. Estão segurando mochila e caderno, não é arma, não é faca. Não estão roubando e nem se prostituindo, estão estudando!" desabafa Bruna Silva, mãe da vítima, que culpa os policiais pela morte do filho com base no depoimento da própria vítima, que permaneceu lúcida por alguns instantes após o tiro. “Mãe, eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim. Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa de escola?”
Caso João Pedro
18 de maio de 2020, Complexo do Salgueiro – Rio de Janeiro
Durante uma operação contra o tráfico de drogas que atua na região de São Gonçalo no Complexo do Salgueiro, ocorre uma perseguição e troca de tiros entre policiais e civis. Uma criança inocente foi morta por um fuzil na mira de um policial, enquanto brincava com os amigos na casa dos tios.
Embora o laudo expedido pelo legista confirme, a bala encontrada no abdome da criança tem o mesmo calibre que as usadas pelos policiais envolvidos na operação, os três investigados pelo crime continuam trabalhando normalmente.
O crime ocorreu no mesmo mês em que George Floyd foi assassinado, nos Estados Unidos, por um policial branco que pressionava o joelho sobre seu pescoço até a morte. A sociedade diante ao racismo, a violência policial, e o descaso das autoridades de forma tão explícita, desperta um sentimento de indignação e revolta aos atos desumanos que os negros vêm sofrendo há décadas.
No Brasil, crimes como este ocorrem todos os dias e passam despercebidos aos olhos da sociedade. Portanto, com o episódio do George Floyd, protestos em todos os cantos do mundo e movimentos como Black Lives Matter favoreceu a denúncia e a busca da justiça, o que gerou grande comoção e visibilidade em torno do assassinato de João Pedro.
O crescimento assustador de 741 mortes causadas pela polícia nos 5 primeiros meses de 2020, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), deferiu uma liminar que restringia operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro, durante a pandemia de Covid-19, e prevê responsabilização civil e criminal em caso de descumprimento.
Massacre no Jacarezinho
06 de maio de 2021, Complexo do Jacarezinho – Rio de Janeiro
Das 47.000 mortes violentas de 2019, 13% ocorreram durante intervenções policiais, segundo o anuário mais recente do Fórum Brasileiro de Segurança. O Rio de Janeiro, se destaca como o lugar mais letal aos suspeitos.
Na quinta-feira, 06 de maio de 2021, uma tropa com 200 policiais armados avançou em direção ao Complexo do Jacarezinho, dando início a operação mais letal do estado. Após sete horas, havia 28 mortos ou jogados nos becos e quartos em vários pontos da comunidade. Dos alvos da operação, apenas seis dos 28 foram detidos ou mortos.
Uma vez que STF proibiu ocupações policiais em favelas cariocas durante a pandemia, a operação foi realizada de forma ilegal. A Polícia Civil se defende dizendo que os agentes agiram em legítima defesa e que os mortos tinham ligação com o crime organizado e o tráfico de drogas.
Os moradores da comunidade se reuniram em um protesto contra a chacina: “Parem de nos matar”, diziam em cartazes e camisas. Em São Paulo, os protestos foram feitos no vão-livre do MASP, pela Colisão Negra por Direitos, que reúne cerca de 200 entidades. “A chacina do Jacarezinho se insere no topo da lista de extermínios que marcam o triste e violento cotidiano das favelas do Rio de Janeiro e que escancara o racismo presente na sociedade brasileira”, afirma a instituição.
São Paulo – Os alvos são sempre os mesmos
Caso Guilherme Guedes
14 de junho de 2020, Diadema – ABC
Guilherme Guedes, 15 anos, foi sequestrado na noite do dia 14 de junho de 2020. O corpo foi encontrado e reconhecido por parentes em Diadema, região do Grande ABC, dois dias depois o desaparecimento do jovem.
Câmeras registraram o momento em que o adolescente foi abordado por dois policiais que faziam bico de segurança em um galpão da região. A suspeita é de que os envolvidos confundiram o adolescente com um bandido que costumava usar o galpão como acesso para assaltar um supermercado próximo ao estabelecimento.
Segundo a polícia, Guilherme foi sequestrado, torturado e morto por engano ou na intenção de intimidar os reais invasores do local. A morte de um inocente, levou a população às ruas em protestos, em que vários ônibus foram incendiados e manifestantes foram violentamente repreendidos por policiais durante a ação.
Em agosto do ano passado os policiais identificados, o sargento Adriano Fernandes Campos, e o ex-policial Gilberto Eric Rodrigues, tiveram prisão preventiva decretada e em março de 2021. O Ministério Público acusou os envolvidos de homicídio qualificado, por motivo torpe e emprego de meio cruel que impossibilitaria a vítima de possibilidade de defesa. Foi determinado que o caso iria para júri popular, mas ainda não há data marcada para a seção.
Caso Kaio de Souza
29 de maio de 2021, Caieiras – São Paulo
Kaio Souza, de 33 anos, foi vítima de abordagem violenta da Polícia Militar (PM) no sábado, dia 29 do mês de maio em Caieiras, na Grande São Paulo. Os vídeos do ocorrido viralizaram nas redes sociais. Um policial militar xingando a vítima de “lixo”, chamando-o de “negão” e em seguida lhe dando um soco no rosto enquanto outro policial observa. Os jovens questionam a abordagem, e é possível ouvir um deles dizer: "Isso é racismo, hein".
A Polícia Militar que aparece nas imagens agredindo e ofendendo Kaio é o cabo Rodrigo Fernandes de Oliveira, de 35 anos. No ocorrido, as vítimas foram acusadas de embriaguez ao volante, resistência e desobediência. Apesar de negarem as acusações, os rapazes foram algemados e presos, tendo sido liberados depois.
O cabo Rodrigo admitiu as agressões e as justificou afirmando que a situação estava “fora de controle”, e que desferiu o soco em Kaio para não precisar sacar sua arma de fogo e evitar riscos aos envolvidos e terceiros. A abordagem dos policiais militares representa os crimes de abuso de autoridade, lesão corporal e injúria racial. Após a divulgação dos vídeos, o cabo acabou afastado preventivamente do patrulhamento nas ruas pela Polícia Militar e foi investigado por racismo.
Entrevistas
Para o professor da PUC-SP, Amailton Magno Azevedo, o modelo de segurança pública ainda visa proteger brancos e criminalizar negros. "80% do judiciário é composto por homens brancos. Isso influencia diretamente nas decisões do judiciário. Temos uma justiça branca que julga jovens negros e pobres. O imaginário branco sobre o negro está atravessado de representações negativas: escravo ontem, bandido hoje", disse. Sobre as possíveis soluções para esse cenário, ele declara: "Precisamos formar policiais que não vejam o negro como criminoso nato. Enegrecer o corpo do judiciário (promotores, juízes e delegados) e dar formação sobre racismo estrutural aos brancos ignorantes e apáticos."
Em entrevista para o Jornal Agemt, o advogado criminalista e ouvidor da polícia do Estado de São Paulo, Elizeu Soares Lopes refletiu acerca do racismo, violência policial e o problema no modelo de segurança pública. Confira a seguir.
A questão racial ainda influência muito nas decisões do Judiciário. Por que ainda presenciamos a associação entre raça e tendência ao crime?
Tem-se muitas teses criadas ainda no período da escravidão e que foram retomadas no período das práticas fascistas na Europa que formaram ideologia, que criaram concepções que povos que não são brancos são inimigos, não tem alma, são preguiçosos, são selvagens, e assim por diante. É fundamental superarmos estas teses, muitas divulgadas como piadas, e que chegam em todas as classes sociais, em todos os setores profissionais. Termos consciência e o respeito por todos os povos e cultura deve ser o primeiro movimento para que possamos superar a violência, o crime e termos uma sociedade com justiça.
O modelo de segurança pública vigente no estado realmente tem como foco o combate à criminalidade e a proteção da vida? A impunidade é um fator agravante?
Sim, o sistema de segurança pública atende aos requisitos de proteção à vida e a organização da sociedade. A Polícia Militar no Estado de São Paulo, por exemplo, tem 190 anos, e durante todo este período passou por mudanças e adaptações necessárias no tocante a respostas à sociedade que é dinâmica e mutável. Podemos ter críticas e podemos sentir que o modelo de segurança tem limitações, mas estas exceções devem ser debatidas para que o sistema de segurança pública se fortaleça em seu papel.
O impacto da letalidade policial na população negra pode ser visto quando jovens e homens negros estão no topo das estatísticas de homicídios. Qual é o principal motivo disso? A impunidade é um fator agravante?
A sociedade brasileira viveu mais tempo na escravidão do que na liberdade dos povos e etnias. Então, devemos a todo momento lembrar que vivemos em uma sociedade racista, com cultura enraizada na prática escravocrata. Lembrar também que pouco se incluiu os negros durante o processo de democracia e liberdade. Então sim, os jovens negros são vítimas de um processo de exclusão que se perdura por anos. Sim, as polícias tem em seus agentes práticas racistas, homofóbicas e machistas. O caminho é a formação constante em história e cultura do negro no Brasil, assim como dos povos originários, os indígenas. Com a formação e a sensibilização podemos alcançar práticas na segurança pública que preservem vidas.