Axé existe para além do místico

O axé é também uma forma de trabalho, de paciência e de cuidado.
por
Natália Matvyenko Maciel Almeida
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17/11/2025 - 12h

Por Natália Matvyenko 


 O cheiro do café se mistura ao das ervas secando num canto da sala, mulheres e homens de todas as idades correm de um lado pro outro, amarram panos coloridos ou brancos, colocam as guias, colares de conta confeccionadas para suas entidades, uma celebração está prestes a começar, causa frio na barriga até pro mais cético dos seres vivos. Gabrielly, de vinte e seis anos, ajeita os panos brancos dobrados sobre uma mesa simples e diz, com calma, que tudo o que aprendeu na vida veio do chão do terreiro. 

Cresceu entre rezas, cantos e gestos que, mais do que rituais, ensinaram a olhar o outro com respeito. Desde cedo entendeu que fé, para quem carrega o axé, é também uma forma de trabalho, de paciência e de cuidado. A primeira lembrança vem da infância. Aos oito anos, ainda pequena, acompanhava a mãe numa gira de umbanda. Ficava no canto, observando os cambones – aqueles que auxiliam as entidades – e sentia um chamado que não sabia nomear. Com o tempo, passou a ajudar também. Aprendeu a servir a água, a acender a vela, a estar presente. Aos dezesseis, rodou pela primeira vez – rodar é quando o santo desce, toma teu corpo e você abre espaço pra que ele ou ela cheguem – recebeu uma entidade cigana que marcaria o início de sua caminhada. Foi ali que compreendeu que mediunidade não era um dom extraordinário, mas uma entrega cotidiana. O nome de sua entidade é um segredo, é o íntimo que muitos de religião de matriz africana carregam.

moça dançando incorporada de cigana
Foto reprodução: Gabrielly Orrani


É curioso ver como esse mundo atrai dos evangélicos mais intolerantes e católicos. Mesmo condenando por aí, o misticismo e o segredo atraem o conselho malandro, o samba da casa, a comida gostosa. Toda gira está lá, com olhos curiosos e procurando algo que não encontram em suas religiões maternas, fervorosas e rígidas.
    

Entre as batidas dos atabaques e o silêncio das madrugadas de preparo, Gabrielly Orrani construiu o que chama de família de axé. Dirige hoje uma casa simples, com poucos filhos de santo. Não fala em liderança, mas em convivência. Diz que aprender com os mais velhos é o que mantém a tradição viva, em suma conservada oralmente, e que o respeito é o alicerce de qualquer caminho espiritual. Tem sete anos de candomblé, mas não é ialorixá, prefere não se apressar. Diz que a gente nunca para de aprender, mesmo depois dos sete anos, ainda tem muito pra entender sobre o mundo e sobre a gente.

A rotina da casa é marcada por gestos de cuidado. Uma vez por ano, Gabrielly e seus filhos se juntam para preparar doações. Fazem comida, recolhem cobertores, visitam moradores de rua. Não há publicidade nem câmeras, só o desejo de retribuir o que se recebe. Esse gesto, para eles, é extensão do que aprendem no terreiro: olhar o outro como parte de si. A fé que praticam é feita de afeto, não de milagres. Quando alguém adoece, os filhos da casa correm, acendem vela, reza, passam pipoca – ritual para tirar doenças e males, associado ao orixá Obaluaê, o que adoece mas também cura – chamam o preto velho pra conversar. Tudo isso é cuidado, é a medicina dos velhos, de quem foi trazido a força para Pindorama e de quem já estava aqui, explica. Para quem vive a umbanda, o sagrado está justamente nessa capacidade de enxergar o outro com empatia.

Angela, uma figura carismática e de conversa deliciosa, daquelas que você senta pra ouvir, já trabalhou de tudo nessa vida, principalmente o trabalho braçal, até caminhoneira já foi, é mais velha de religião, acompanha Gabrielly há anos, que é sua filha de sangue e de santo. Foi com ela que aprendeu a importância do silêncio e da escuta. As duas compartilham o mesmo entendimento: a religião é feita de gente, sem comuna não se faz nada. Ela diz que aprendeu mais com as entidades do que com qualquer pessoa. Fala que elas ensinaram o que é ser paciente, carinhosa e atenciosa, mas que a maior lição veio do convívio humano, religião é união, é comprometimento. É quando a gente entende que ajudar o outro é também se curar, é o que vale no fim do dia.

Os dias no terreiro são atravessados por cansaço e alegria, contam que cuidar também consome energia, não só física. Muitos dos filhos de Orrani trabalham fora, e ainda assim chegam ao final da tarde para preparar as festas e as obrigações. O corpo cansado encontra repouso na força coletiva. Há quem chegue direto do serviço, ainda de uniforme, para ajudar nos ebós e nos preparos. Às vezes, nem dá tempo de voltar pra casa. Eles brincam dizendo que vivem em “jornada dupla”: trabalho e terreiro, terreiro e trabalho. Entre o suor e a fé, constroem uma rede de apoio que se fortalece a cada encontro, ali compartilham dificuldades, segredos de cozinha – onde os elementos utilizados nas festas e giras são feitos – brincadeiras e muita risada.

Abdicar de certos prazeres é parte do caminho. Muitas vezes, um toque coincide com o aniversário de um parente, uma festa ou um descanso merecido. E mesmo assim, estão lá, de branco, prontos para servir. Não se veem como mártires, mas como quem encontrou sentido em ajudar. É escolha e entrega, ressalta Angela. Estar no axé gente é abrir mão de estar em outros lugares pra estar aqui, fazendo pelo outro. E isso não é castigo pra quem aconselha – as entidades pedem um abraço aos consulentes, que são os visitantes da casa mas não possuem obrigações, oferecem um cigarro, um trago no cachimbo ou um golinho do marafo, que a gente conhece como cachaça – é amor.

Entre a fumaça do incenso, a alfazema que banha o corpo dos convidados e dos filhos, do benjoim, da defumação que embaça o ambiente, barulho das panelas, a casa de axé se transforma num espaço de homenagem e conforto, tire seu sapato, suje seus pés e dance. Crianças brincam do lado de fora enquanto os adultos conversam. Não há luxo, casinhas de madeira com chão de terra batida, mas há pertencimento. Cada canto guarda uma história, cada vela acesa carrega o nome de alguém vivo, ou pra quem acredita, morto. A fé ali se vive sem receio, no toque dos ogans – responsáveis pelos batuques e pontos que balançam os corpos e chamam as pombagiras, malandros, caboclos e boiadeiros – eles diferente dos outros filhos da casa, não incorporam, mas são tão respeitados como os outros.

No fim do dia, quando o som dos atabaques cessa e o terreiro se esvazia, Gabrielly apaga as velas e sorri. Diz que o silêncio também é reza. E que, se há uma palavra capaz de resumir o que é viver dentro da umbanda, essa palavra é amor – o tipo de amor que se aprende com o tempo, nas pequenas tarefas, no convívio, no olhar. Um amor que não pede nada em troca, apenas segue, como o som que ecoa depois da última batida do tambor. A palavra mais dita pelas pessoas de axé, seja no candomblé, umbanda, tambor de mina, jurema sagrada é essa: comuna.
 

pessoas dançando com roupas sagradas da umbanda
Foto reprodução: Gabrielly Orrani