A Arte Imita a Vida e a Morte

“É um gênero que chegou para ficar”, afirma o cineasta Maurício Eça sobre o 'true crime'.
por
Maria Ferreira dos Santos
Marcello R. Toledo
|
07/06/2022 - 12h

Dificilmente uma notícia circulada nos jornais fica limitada ao campo jornalístico. É comum que haja enormes desdobramentos a respeito do fato após a sua divulgação, seja se tornando assunto de debates ou até mesmo virando livro ou produção cinematográfica. É o que acontece, por exemplo, com crimes que chocam uma grande parcela de pessoas. Há casos dos quais é possível dizer que horrorizam o mundo inteiro. É nesse contexto que surge o gênero true crime.

O true crime é o termo em inglês designado para tratar das obras sobre crimes reais. Indo muito além do “baseado em fatos reais”, essas realizações normalmente têm alto teor jornalístico e jurídico , contendo entrevistas, autos de processos, gravações feitas em tribunais, imagens da cobertura da imprensa e diversos outros. “Fazer true crime é um processo muito sério, foi preciso ter um acompanhamento jurídico muito forte, porque a gente está falando de vidas, de vítimas e de pessoas que ainda estão entre nós”, disse Maurício Eça, diretor dos filmes “A Menina que Matou os Pais” e “O Menino que Matou Meus Pais”.

O trabalho de Eça, lançado pela Amazon Prime Video em outubro de 2021, retrata o assassinato do casal Manfred e Marísia von Richthofen a pauladas pelo genro Daniel Cravinhos e seu irmão Cristian. Apesar da maneira agressiva do crime, o que chocou o Brasil em 2002 foi o envolvimento da filha das vítimas, Suzane von Richthofen, como mandante. O cineasta disse que todo o processo de produção foi trabalhoso. “Todo o pessoal da equipe, os atores, os produtores, todos sabiam muito bem onde estavam pisando, tudo com um respeito imenso e sabendo os limites. Nós tivemos um cuidado absurdo e acho que isso fez a diferença”.

Foto do cenário dos filmes “A Menina Que Matou os Pais” e “O Menino Que Matou Meus Pais”, com os atores Carla Diaz como Suzane von Richthofen e Leonardo Bittencourt como Daniel Cravinhos Foto/Divulgação: Stella Carvalho/Galeria Distribuidora/Amazon
Foto do cenário dos filmes “A Menina Que Matou os Pais” e “O Menino Que Matou Meus Pais”, com os atores Carla Diaz como Suzane von Richthofen e Leonardo Bittencourt como Daniel Cravinhos Foto/Divulgação: Stella Carvalho/Galeria Distribuidora/Amazon

 

Em entrevista à AGEMT, Maurício relembrou algumas críticas feitas à realização dos longas-metragens, muitas delas eram ditas por pessoas que não sabiam ao certo como seria executado o projeto. A maioria se perguntava se os assassinos iriam receber cachê por isso, quando na verdade todo o procedimento foi feito com base nos documentos da época, não necessitando, assim, da ajuda dos criminosos. Portanto, além de não terem qualquer envolvimento com a iniciativa, os criminosos não receberam valor algum. “O que nos guia é o processo [judicial]”, declarou o diretor de cinema. 

Ainda sobre a aceitação do público, ele reiterou que alguns espectadores procuram “respostas simples que não existem”, porque a verdade sobre o crime é conhecida somente pelos que estavam ali presentes. Assim, o intuito do true crime não é julgar ou inocentar alguém, mas apresentar o que se sabe sobre o ocorrido. Maurício acrescenta: “nosso objetivo em nenhum momento foi glamourizar essa história ou defender eles, era realmente mostrar [...]muitas vezes não tem que justificar, a gente tem que mostrar! Por que você vai justificar o que o cara fez? Não dá para justificar. É complicado né”.

Questionado sobre o porquê da categoria já ser tão popular fora do Brasil e só agora ter ganhado espaço por aqui, Maurício declarou que  “o true crime já está sendo consumido no Brasil há muito tempo, mas só agora ele está sendo aceito em produções locais”. O diretor completa que parte do motivo de tal crescimento talvez seja devido a conjunturas do nosso tempo “a pandemia acelerou muito isso, tem um pouco de inconformismo, um pouco de curiosidade, acho que tem um pouco disso tudo”. Ele conta também o quão difícil foi convencer os investidores a produzirem tais filmes, “Foram anos para conseguir convencer as pessoas a fazerem esses filmes. Elas consomem tanta coisa gringa, por que não consumir do brasileiro?

É no mínimo curioso o interesse das pessoas por histórias muitas vezes sangrentas de crimes. Esse gênero cresce cada vez mais e no Brasil ainda temos diversos filmes e documentários sendo produzidos para o futuro, como confirmou o cineasta. A psicóloga e psicanalista Ana Carolina Valim, resgata os estudos de psicanálise de  Jacques Alain Miller para explicar tanto interesse em um gênero trágico. Para ele, segundo Ana, “nada é mais humano do que o crime”. “Rejeitamos o crime porque ele mesmo nos faz humanos ao não cometê-lo. Por conseguinte, são os mesmos seres humanos que os cometem, pois foram eles mesmos que o inventaram. Não existe crime na natureza animal [...] os animais não sentem culpa por matar ”, esclarece Valim. Ainda sob esse aspecto, a profissional traz o debate acerca do entendimento da sociedade sobre o ato de matar: “Assistimos crimes de várias modalidades em nossas telas. Gostamos daquele que mata pelo bem e repudiamos aquele que mata pelo mal. Entretanto, o que não observamos é que essas duas figuras possuem o denominador comum: matar. Os super-heróis também causam fascínio na grande massa consumidora de ficções. Mas qual a diferença entre o herói que mata pelo bem e o monstro que mata pelo mal?”.