Aproxime-se freguês, aqui vende-se vida

Apenas mais uma batata na feira, palco onde somam-se histórias nutridas de amor e resiliência
por
Vitor Nhoatto
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06/06/2024 - 12h

Não é apenas o sol que consegue aquecer o gélido concreto urbano. Lonas abertas, madeiras estruturadas, produtos apresentados, todos a postos. Uma reunião de almas comunicadoras, que buscam o sustento colocando suas hábeis mãos no que a terra melhor tem a oferecer. Em meio a gritos, sons de facas, sacolas e máquinas de cartão, o alimento cuidadosamente regado de energia pelos carregados olhos de amor dos personagens principais dessa festa, passa de um para o outro. Essa é a feira.

Como um palco a ser percorrido, fregueses vem e vão na Rua Ministro Godói em Perdizes, devidamente fechada para que o show possa continuar. No local encontra-se uma variedade de objetos, posicionados delicadamente pelos atores da peça, esses com texto ensaiado por anos e para diferentes públicos. À medida que se adentra no universo artisticamente comerciante a sensação térmica sobe. Sem ser desconfortável como as recentes ondas de calor ocasionadas em São Paulo pelas mudanças climáticas, o calor humano cativante dos negociantes sob as tendas das barracas fabrica uma atmosfera aconchegante.

Mais ao centro do palco asfaltado, uma estrutura de aço acompanhada de sacas de variadas batatas, instrumentos de batalha como balanças e sacolas, é preenchida pela irradiação energética de uma das protagonistas do evento. O bordado na roupa de gala anuncia seu nome, e a voz alegre e cheia de vitalidade proclama: "Fala amor, você quer um pinhão? Você vai fazer ele hoje ou não? Se for pode levar ele assim no saquinho plástico, porque esse outro assim respira mais, e esse tem que fazer ou tirar do saquinho". Um olhar cuidadoso debaixo dos óculos enxerga para além do físico. No alto dos seus 78 anos, Dona Beatriz alavanca sua barraca. Suas mãos vibram dentro das luvas de látex e cuidadosamente revelam a beleza dos alimentos que vende. "É oito amore. Yuri passa o PIX para ele aqui? Foi, passou! Obrigada amor". Sempre ressoando palavras de alto astral, e atendendo com todo o empenho os consumidores que ali param, assim segue ela durante o restante da apresentação, a qual já repete há 60 anos.

Dona Beatriz limpa uma cebola com uma faca e veste luvas de látex
“Essa tava com a casquinha feia, nem parecia que era tão bonita” - Foto: Vitor Nhoatto

Entre idas e vindas de fregueses, uma tela começava a ser preenchida, e o que os cabelos brancos e as marcas de uma vida bem vivida no rosto, materializadas em forma de rugas, contavam, vão sendo verbalizadas. "Os meus pais eram feirantes, eu já vim assim de uma tradição. Quando conheci o meu marido, tinha 13 anos quando comecei a namorá-lo, ele comprou uma barraca de batata, e depois de 5 anos a gente se casou e ficamos nessa vida, sempre com batata". O rumo segue e mais cores vão compondo a atmosfera. "Nós somos os dois portugueses, nascemos lá. Ele que tem 88 anos, veio com 14, agora eu não. Eu vim em 1946, ano que nasci. Nasci em março, em setembro meus pais vieram para aqui".

As terras lusitanas passaram por uma crise econômica na metade da década de 1940, no final da segunda guerra mundial e após seu encerramento. Durante o conflito, Portugal registrava recordes positivos ao ser um dos maiores vendedores do minério volfrâmio, usado em armas. No entanto, apesar de ter se mantido neutro na época, acatou a pressão dos países aliados e a comercialização do volfrâmio foi proibida em junho de 1944, impactando fortemente o país. Isso levou a imigração de milhares de pessoas em busca de melhores condições. O Brasil foi o principal destino desses portugueses de 1930 a meados de 1960, e Dona Beatriz com seus pais e mais tarde seu marido, representam quatro dos 148.699 portugueses que entraram em terras brasileiras entre 1931 e 1950 segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Com uma voz que diz muito mais do que as palavras que da boca saem, a viagem no tempo segue com uma gratidão apaixonada. "Tivemos outros lugares, trabalhamos em Osasco, em Itapevi… mas sempre uma aqui, 60 anos aqui. E a vida foi assim, a vida foi para trabalhar na feira, criar os filhos, e viver eu e meu marido muito felizes graças a deus. 46 anos nós vivemos casados". Preenchida cuidadosamente de lembranças, o amor pelo marido, o qual se refere em alguns momentos ainda no presente, pode confundir o telespectador da obra. Antônio partiu há 12 anos e 10 meses, como especifica. "A vida é assim meu amor". 

Antiga habitante do centro expandido de São Paulo, Dona Beatriz vive hoje com  seus dois filhos no bairro transmorfo e de história curiosa, Granja Viana. Com nome que remete às suas origens de fazenda familiar, rodeado pela Mata Atlântica, o local já foi uma ilha de descanso de alto padrão, mas hoje está denso e prejudicado, apesar de aos olhos da ilustre moradora soar como um oásis pertencente a Cotia. "Eu moro no quilômetro 22,5 da Raposo Tavares, fui para lá em 2001, era bastante mato, até a rua que a gente desce para nossa casa era terra ainda, agora não, tudo lindo asfaltado. Muitas árvores. O lugar é gostoso para gente morar".

Em sua Kombi branca, vai e vem, cortando a rodovia nos cinco dias de trabalho, sempre bem pela manhã. "A gente chega mais ou menos 5 horas, e eu levanto todo dia 4 horas, todo dia… mas tô acostumada. Nem precisa mais do despertador, é aquele hábito, na graça de Deus é bom, que a gente tem saúde". As aparições da feirante e seu fiel escudeiro Yuri, com quem trabalha há quase uma década, foram designadas para ocorrer em bairros paulistanos distantes de sua atual casa pela prefeitura, em uma época que Dona Beatriz morava na zona oeste da cidade. "A vida é assim, a gente vai levando aonde se sente bem, onde tá feliz… e eu tô". 

Formalmente regulamentadas em 1914 no estado de São Paulo, as feiras livres movimentam a economia e seguem resilientes frente à disputa de atenção. Os shows familiares e intimistas  passaram por uma crise nas décadas de 1960 e 1970, com a chegada dos super festivais, chamados de supermercados. Espelhava-se na imprensa que era próximo o fim dos artistas locais, alegadamente incapazes de peitar as estrelas refinadas recém chegadas como Pão de Açúcar, Carrefour e o extinto Sirva-se. 

Porém, representando mais do que um espaço de trocas comerciais, e sim de laços humanos, as constituintes da identidade nacional resistiram e se expandiram. De 2013 a 2023 houve aumento de 10% no número de feiras segundo a Prefeitura de São Paulo. Dona Beatriz integra 5 das 955 hoje registradas, e conta alegre que graças ao local de convivência e negócios, criou dois filhos. "O que importa é que dá para gente sobreviver com dignidade né? E a gente vai vivendo" O tempo não para, e os fregueses sobem ao palco, buscando matéria prima que alimenta além de seus corpos, mas a alma também.

Vestindo um avental amarelo com seu nome bordado em vermelho ao centro, Dona Beatriz segura uma cebola enquanto olha para a câmera
Não é a individualidade que faz uma feira e as falas no plural de Dona Beatriz reforçam tal fato, enquanto seu olhar profundo cativa quem por ali passa - Foto: Vitor Nhoatto

"Bom dia meu amor, tudo bem minha querida? Olha que coisa linda essa batata maravilhosa". Aqui tem-se um momento de pausa na recapitulação histórica, mas não no trilhar do presente. Dona Beatriz agarra com a sua tonalidade vocal levemente estridente e recoberta por ternura e simpatia, a aura de quem para na barraca. "Aqui tem 1,6kg meu amor, quer completar dois? Pode deixar que a gente pega. Essa outra é só escovada por isso não tem tanta terra, mas essa daqui como eles colheram com a terra molhada ficou assim. Dois quilos, tá amor? Deu 18 com 16, é PIX? Brigada meu amor. Tchau amore, vai com Deus".

Apesar de não ser tão agitada como costumava, percebem-se vários públicos na feira. Entre alunos e funcionários da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pedreiros das obras do entorno, e moradores da rua, que entram e saem dos prédios, algumas vezes em veículos de luxo. O bairro de Perdizes se transformou ao longo dos 60 anos de trabalho de Dona Beatriz no local. Nas últimas décadas a classe média se apropriou da região, originalmente familiar e pacata, como revela a arquitetura das poucas construções tombadas que resistiram à especulação imobiliária. Levantamento da Data Lello, instituto de pesquisas e inovação da Lello Condomínios, aponta que no ano vigente, 818 condomínios serão entregues, com destaque ao bairro da feira.

Engrenando-se novamente no monólogo, o brilho de Dona Beatriz é como uma chama intensa que ilumina o ambiente. Ela percorre seus antecedentes e os manifesta à plateia sempre que tiver quem escute, mas não por desespero de ser ouvida, e sim pelo orgulho de sua trajetória.  O avental com seu nome inscrito, de cores intensas, faz jus ao magnetismo da pessoa que o veste, a qual não para em um só lugar. Nada parece abalar o desempenho da estrela da peça, que se refere aos potenciais clientes e amigos como uma artista se dirige a seu público. "Aqui só atrapalha quando o pessoal não vem". 

Mãe orgulhosa, o amor por sua família reluz nas lentes grossas de seus óculos e na tela de seu celular com capinha cor de limão vibrante. As pálpebras se apertam e os olhos levemente se enchem de lágrimas de alegria enquanto mostra uma fotografia com seus dois netos, Rafael e Carolina. A feirante então para por um instante e com um suspirar profundo, desacelera para refletir sobre tudo que já viveu. "Foi assim, uma vida maravilhosa, feliz. Criei meus filhos, tenho dois netos [...] o que importa é que dá para gente sobreviver com dignidade. É difícil, não é fácil não, mas consegue… a gente tem que ter sempre bastante equilíbrio para ir sempre pelo caminho certo, a vida é assim, a gente vai levando."

A população brasileira vem envelhecendo gradualmente devido a melhores condições em áreas como a da saúde, educação e alimentação, refletindo em mais longevidade, apesar de haver muito ainda o que melhorar. Segundo o Censo 2022, a média nacional de vida dos brasileiros é 75,5 anos. "Agora só esperar o fim da vida, né? Tô com 78 anos e agora a gente não pode esperar mais muita coisa. Eu pretendo chegar aos 80 trabalhando, mas vamos ver o que Deus vai nos reservar, se eu tiver força do jeito que eu to agora acho que eu chego até os 80… é assim meu amor", comenta Dona Beatriz em tom de agradecimento, longe da lamúria ou de um esperado cansaço.

Batatas rosadas, batatas doces, pinhão e batatas inglesas expostas na barraca em caixas
O ato principal permanece, mas como os novos tempos pediram, convidados aparecem lá de vez em quando em meio as batatas -  Foto: Vitor Nhoatto

O tempo vai passando, e sem perceber o show se encaminha para seu fim. É chegada a hora de voltar a coxia e desmontar o palco para a próxima apresentação. A emoção transparece no olhar e as bochechas se alargam e se erguem dando lugar a mais um sorriso, dessa vez de despedida. "Você vê como a feira é gostosa? O contato, a amizade, o amor que a gente tem". Pouco a pouco o movimento vai cessando e as batatas, cebolas e pinhões vão entrando na Kombi pelas mãos de Yuri e Dona Beatriz, afinal, o tempo não para. O dia seguinte começa cedo e é de mais trabalho, na quarta-feira sendo a vez do bairro Pompéia. 

A sensação térmica incômoda do calor escaldante volta a se impor sob as cabeças agora desprovidas de lonas. Cada um volta a seus próprios universos e preocupações da vida contemporânea incessante. Cascas, resíduos e alguns papéis ficam pelo chão, que será limpo pela Prefeitura, ao passo que as peças teatrais históricas que quase ninguém conhece, se dissipam no emaranhado de vias urbanas da selva de pedra. Esse é o ciclo, semana que vem haverá mais. E como diria Dona Beatriz, "é assim, a vida é um paraíso".

 

Esta matéria foi produzida como parte integrante das Atividades Extensionistas do curso de Jornalismo da PUC-SP.

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