“Tem pessoas que acreditam que a capoeira se resume ao ‘paranauê’ (). Se você vai numa roda de capoeira, vai ver que, hoje em dia, raramente se escuta o paranauê”. É assim que Wagner, o Mestre Sabão de Capoeira, define a falta de conhecimento sobre a capoeira por parte do público geral. Mesmo após séculos e séculos de prática no Brasil, ainda se enfrenta dificuldade em atingir novos praticantes.
Para contar um pouco da história da capoeira e a relevância dela na cultura brasileira, esta reportagem entrevistou Mestre Sabão, psicólogo e mestre do Grupo Praia de Amaralina, e Rafael Blessa, historiador e mestrando em história com a capoeira como objeto de pesquisa.
Não se sabe ao certo a data de surgimento da capoeira, mas, de acordo com Rafael Blessa, isso aconteceu entre os séculos XVII e XVIII. “É uma mescla de práticas, principalmente de influência da diáspora africana, então, são práticas que vão surgir no Brasil, exclusivamente no Brasil, a partir de práticas que já existiam na África”, conta o historiador.
A luta é criada, basicamente, para resistir ao processo de escravização da população preta, que sofria nas mãos dos senhores de engenho. Tudo surge durante um processo de “intercâmbio” que, como conta Rafael, foi bastante violento: “Intercâmbio que, na verdade, é uma palavra muito ‘bonitinha’ para falar sobre o processo de massacre - tanto dos povos nativos, quanto dos povos africanos aqui no Brasil -, mas [a capoeira] surge desse processo de troca de culturas, tanto africanas quanto ameríndias”, diz. “A capoeira é fundamental nesse processo de resistência à escravidão, porque é ela que faz com que os senhores de engenho e os capatazes tenham medo de agredir os escravos - pois eles também dominam uma técnica de luta que é capaz de ir contra o poderio ofensivo, legitimado pelo Estado, com armamentos mais pesados”, explica o professor.
Apesar da resistência por meio da capoeira, o pós-escravidão no Brasil foi marcado pela marginalização da prática. A Lei Áurea foi outorgada em 1888, e, um ano depois, o país se tornou uma República - o racismo, como sabemos, se manteve inabalável. “Os republicanos não queriam nada que fizesse referências aos negros, então o Brasil continuou sendo um país racista - e não queriam permitir nada que tivesse a cultura africana impregnada”, continua o historiador. “Dentre esses fatores, a capoeira vai ser criminalizada no primeiro código penal republicano, Artigo 402, dos vadios e capoeiras. Vai falar que todo mundo que for pego praticando capoeira vai ter pena de detenção de seis meses, e os líderes daquilo que chamavam de bandos, teriam pena em dobro”, conta Rafael.
A capoeira seguiu marginalizada até a virada do século, quando, na década de 1920, começou a ser valorizada como um esporte, uma prática verdadeiramente nacional. O assunto é, inclusive, o projeto de pesquisa de mestrado de Rafael Blessa. “É o meu projeto [...], falar sobre como a capoeira passou a ser esporte e deixou de ser crime. [...] Se torna um símbolo de identidade nacional como um esporte que foi criado justamente aqui, com uma carga histórica grande, de resistir ao processo de escravidão e que consequentemente vai ganhando o mundo, sendo extremamente respeitado, não só pelo seu caráter esportivo, mas pelo seu caráter cultural”, afirma o professor de história, que também é praticante da modalidade. “Hoje a capoeira está presente em mais de 130 países e é respeitadíssima, não só culturalmente, mas até como uma arte marcial, que se iguala com outras artes ao redor do mundo”, conclui.
Como esporte ou como dança, a capoeira se relaciona com a sociedade e com outras áreas da vida. Mestre Sabão diz “não se incomodar” com o tratamento de dança, mas vê predominância de movimentos mais belos em apresentações voltadas ao público “leigo”. Além disso, destaca a relação - indireta, segundo ele - da capoeira com a psicologia, sua área de trabalho: “Eu tenho alunos hoje que dão aula, e vejo uma questão indireta: muitos alunos se interessam por psicologia por causa da capoeira. Já casei alunos que se encontraram na capoeira, e gosto de pensar pelo olhar de ‘família’. Eu acho que a cultura tem essa influência, de ter esse pano de fundo, que é a família. Consigo perceber meus alunos além, por um vínculo de ordem afetiva”.
O professor Rafael Blessa reforça a importância da valorização da capoeira como manifestação de resistência cultural: “Entendo a importância dessa prática, porque acho que ela é uma prática cultural esportiva fundamental que temos, no Brasil, que trabalha massivamente a história da população negra”, afirma o historiador, que completa: ‘A gente consegue através da capoeira contar a história, e a capoeira também é um meio de transformação social e de conscientização da população de massa”.
Para Mestre Sabão, porém, os praticantes da capoeira não têm dado muita atenção à história: “A capoeira é muito carente de intelectuais, de pessoas que pensem sobre a capoeira. Encontrar um material de capoeira que não seja tendencioso é muito raro. Sempre que alguém me pede algo sobre, peço pra procurarem historiadores. Acredito que esse é um dos fatores que fazem com que a capoeira esteja tão distante de fomentos, de editais, de projetos…”, diz.
Apesar da “reclamação”, o mestre acredita que o caminho do fomento da capoeira está dentro da esfera pública: “Políticas públicas, de preferência a investida em vulnerabilidade, em lugares de exclusão social. além disso, acho que deve ter a busca por uma narrativa que seduza pessoas que possam investir em projetos assim”, afirma o psicólogo.