Anime e sexo: a sexualização da mulher japonesa

Especialista explica de onde surgiu a sexualização mulher japonesa e a relação com os animes e a cultura conservadora do país
por
Gabriella Lopes
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24/06/2021 - 12h

Por Gabriella Lopes

 

Yumeko Jabami em seu primeiro dia na Academia Privada Hyakkaou, uma escola da alta elite localizada em algum lugar não especificado no Japão, surpreende os colegas quando desafia Mary Saotome, um monstro das apostas. Ninguém conhecia Yumeko e muito menos esperavam que fosse ganhar de Mary. Logo de cara entendemos a personalidade da personagem principal. Ela é viciada em apostar, mas para sua sorte, nasceu com o dom de decifrar as pessoas a sua volta e perceber trapaças, o que a leva ganhar na maioria das vezes. 

A história do anime Kakegurui é bastante interessante. A escola é um tipo de cassino para jovens ricos. A hierarquia começa no grêmio estudantil, formado pelos melhores jogadores até os endividados, tratados como serviçais. As relações de poder e amizade são determinadas pelo nível de habilidade. Assim que o sinal bate e a aula acaba, começam as apostas que dependendo do resultado pode mudar completamente a vida de alguém.

Em todos os jogos que Yumeko participa, ela arrisca perder enormes quantidades de dinheiro e em alguns casos até sua a vida, só para sentir a adrenalina do momento e acima de tudo, o prazer. As cenas não são explícitas, mas podemos entender bem o que a personagem sente. Características como suor, gemidos, bochechas coradas e as mãos em cima das partes íntimas são comuns quando se está em uma cena tensa de aposta.

Para quem lê a sinopse parece uma história comum para o estilo de anime shounen mangá.

O shounen mangá é um estilo de anime e mangá japonês voltado para os adolescentes. O seu foco é o público masculino, mas também atrai o feminino. Para atrair os meninos, uma das artimanhas desse estilo usadas pelos produtores  é a sexualização das personagens femininas, o que, com o tempo, se tornou uma característica comum do estilo.

Kakegurui não é exceção. A maioria dos personagens principais são mulheres e todas são sexualizadas, além de mostrarem traços fortes erotizados de homossexualidade e bissexualidade. Elas são viciadas em apostar e sentem prazer sexual, a ponto de se masturbarem ao longo das partidas devido ao tamanho do prazer que sentem ao jogarem. 

Personagens estereotipadas com as de Kakegurui são reflexos diretos do fetcihe do homem japonês. Não existe qualquer conexão lógica em sentir tamanho prazer sexual com apostar. E são histórias como essas que caracterizam o fetiche japonês. Esses tipos de fantasias sexuais são traços singular da cultura do país, especialmente dentro do grupo masculino. 

Simonia Fukue, professora da USP, pesquisadora da cultura japonesa e especialista em animes explica que no Japão o homem não necessariamente precisa do sexo para se satisfazer. O fetiche é, explica ela, em alguns casos, o suficiente. Isso é algo tão característico que existe um mercado inteiro para suprir as demandas desses consumidores.

 

Kakegurui vai longe nesta questão. Midari Ikishima é uma das integrantes  do grêmio estudantil e é masoquista. Seu jogo preferido é a roleta russa e quando quer sentir prazer, atira na própria cabeça com a  expectativa de levar o tiro enquanto se masturba. Todos os jogos que ela propõe envolvem risco de vida a fim de buscar o prazer sexual. Na vida dos homens japoneses existem situações extremas como essa também.

Para a pesquisadora que descende de japoneses e já morou mais de um ano lá, o problema é sistemático. Diferente do ocidente que está avançado no processo, no Japão, o movimento feminista e a pauta sobre a igualdade de gênero é pouco discutida. Além disso, espera-se da mulher um determinado comportamento e vestimenta.  

Simonia, conta, por exemplo, que quando foi pesquisar a estética kawaii (é um adjetivo japonês usado para chamar algo de lindo e fofo, também é uma estética que envolve estilo de roupa, personalidade e conteúdos animados considerado fofo e delicado) no Japão em 2015, sentiu-se julgada pelas suas roupas serem justas (nos padrões japonês) e pela alça de seu sutiã aparecer, algo que no Brasil é popular.

Na visão da professora, o gênero shounen mangá não é contestado pela sociedade japonesa, porque as mulheres ainda não aprofundaram a discussão sobre os direitos da mulher. Pelo contrário, a maior parte pensa que esse é o normal. 

Ao ser perguntada sobre porque uma sociedade tão conservadora também sexualiza personagens de animes, ela responde que ainda não existe uma resposta concreta. Entretanto, voltando um pouco na história do país, é possível observar alguns pontos que dão pistas de onde esse comportamento veio.

Começa na era Meiji, que iniciou em 1868, quando o Japão pressionado pela expansão do capitalismo abriu sua economia para o mundo ocidental. Segundo Simonia, quando as mulheres japonesas entraram em contato com as mulheres ocidentais, principalmente as europeias, elas tomaram como beleza o biotipo das estrangeiras. Uma das consequências disso foi a sexualização de si mesma. Por exemplo, para tentar aumentar os seios, buscaram métodos como usar roupas decotadas.  

Todavia, esse novo desejo entrou em conflito com as tradições e tendências foram criadas. Simonia explica que na década de 90 com o desenvolvimento da Internet, os japoneses passaram a ter mais contato com a cultura ocidental. Dessa forma, as mulheres perceberam diferenças no modo como o homem ocidental tratavam as mulheres e como os homens japoneses as tratavam.

O carinho japonês, conta a professora, é, de certa forma, agressivo e quando viram o carinho ocidental (como o de um homem de filmes hollywoodianos), passaram a repreender os japoneses pela forma brusca como demonstravam amor. 

Em busca de um parceiro ocidental, as japonesas começaram a mudar sua postura. Passaram a buscar uma profissão e a independência financeira, pois concluíram que seria assim que conquistariam os gringos. 

Por outro lado, o homem japonês passou a se sentir abandonado. No Japão, não é aceitável que mulheres ganhem mais do que homens, pois é dever dele sustentar a família. Além disso, começaram a se incomodar com a voz feminina. Para eles era inaceitável que a mulher não seguisse os padrões de comportamento e estéticos pré-determinados. 

Foi daí que se fortaleceu o fetiche do homem. O sexo ficou um pouco de lado, para dar espaço a carência, levando a situações extremas como o mercado de pernas para abraçar, entre outros produtos.

Ao mesmo tempo, as mulheres descobriram uma nova forma de se expressarem. Para burlar as regras sociais, passaram a se mostrar de forma diferente conforme o ambiente. Simonia fala, que “esse outro lado japonês [da mulher] é: ‘enquanto estou vivendo na sociedade eu sou recatada, mas quando estou com meus amigos, estou fora do nicho disciplinado japonês, que pensam como eu e que são como eu, vou ser sexualizada, quero ser sexualizada’, não são todas, mas é a maioria.”

Em contrapartida, as chances delas conseguirem casar com um ocidental eram poucas. Inclusive, porque a cultura japonesa não aceita facilmente relacionamentos com pessoas de outra nacionalidade. Todavia, uma mulher independente e usando roupas decotadas não atrairia o homem japonês e outra tendência nasceu. 

Foi assim que nasceu a moda kawaii. Simonia não sabe afirmar se foi o kawaii que copiou a cultura japonesa ou se foi o contrário. Mas as mulheres passaram a usar roupas e maquiagens para transparecer fofura e fragilidade. 

Isso, segundo a pesquisadora, é outra contradição dentro da sociedade. Ao mesmo tempo que as mulheres querem se sexualizar, elas querem mostrar fragilidade e vulnerabilidade. Ainda não existe uma conclusão certa para isso, mas Simonia diz que na visão dela, os japoneses são 8 ou 80. Talvez isso explique, mesmo que superficialmente, porque as japonesas vivem essa ambiguidade. 

No Brasil, apesar de não haver uma pesquisa específica para isso, pode-se observar um grupo considerável de consumidores de animes e mangás que se incomodam com o assunto. Mesmo assim, continua sendo consumido tanto quanto no Japão. 



 

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