Giovanna Crescitelli, Laura Mello e Lucas Malagone
Em outubro de 2019, a América do Sul se deparou com enormes manifestações populares no Chile. Conhecido como Estallido Social (tradução: estalo social), os atos iniciaram-se com a resposta dos estudantes para o aumento da tarifa dos transportes públicos e foram crescendo subitamente até concentrarem um total de 1,2 milhão de manifestantes apenas na capital chilena, Santiago, sendo brutalmente repreendidos pela força policial. Essa violenta forma de repressão era familiar aos povos originários do país, como os mapuches, que se solidarizaram e, em nota nas redes sociais da Alianza Territorial Mapuche, apoiaram as manifestações como um povo distante que concordava com suas reivindicações. Naquela semana, se viam inúmeras bandeiras mapuches nos protestos, um número visivelmente superior à própria bandeira chilena. Todos estes fatos levaram a algo inédito na história do país: uma constituinte paritária que teria cadeiras indígenas.
De acordo com Luis Eugenio Campos Muñoz, investigador principal do Centro Interdisciplinario de Estudios Interculturales e Indígenas, a participação das lideranças originárias, assim como a participação feminina, na constituinte é imprescindível: “Foi um processo mal feito e pensado para a população urbana, com pouco tempo e recursos para inscrever as candidaturas, principalmente para os povos de mais difícil acesso, mas eles conseguiram enviar. Não é uma representação porcentual, mas é algo inédito para o país. Houve muita resistência do governo contra os povos indígenas na constituinte, tanto que o povo tribal afrodescendente foi deixado de fora, algo que deverá ser reparado posteriormente.”. Esta nova constituição será escrita por uma constituinte paritária, formada 50% por homens e 50% por mulheres e substituirá a atual Carta Magna, que apesar de ter sofrido alterações, é herança do regime militar de Pinochet.
Para Luis Eugenio, essa nova constituição “é uma aposta, não uma confirmação”, devido à certa resistência da sociedade civil do Chile e pela disputa econômica pelos recursos naturais presentes em terras indígenas. “É necessário que haja melhores leis para a proteção e autonomia dos territórios indígenas, como existe no Brasil a demarcação, além de recuperar o que foi roubado, como as terras da Ilha de Páscoa invadidas pelo Estado Chileno 100 anos atrás”.
Como comentou o investigador, a constituinte é uma aposta, assim como ocorrido no Brasil. Apesar de não ter havido cadeiras para lideranças indígenas na Constituição brasileira de 1988, estes se articularam com lideranças do Movimento Negro e Movimento do Direito das Mulheres para que suas pautas virassem parte da Lei Maior, com demarcação de territórios e outros direitos, que atualmente são violados. Linda Terena, antropóloga e indígena do povo Terena de Dourados MS, fala que, sem dúvidas, a participação originária na nossa constituição foi um grande passo para a “consolidação da tão falada ‘democracia’, sobretudo, a efetivação da democracia consolidando direitos às diversidades”, mas que o escrito e o cumprido são coisas diferentes. “Não nos espanta em nosso país a cultura de falar e fazer tão distantes em sua realidade, dessa forma, jamais seria diferente quando se fala naquilo que está no “papel” com aquilo que se faz na prática. Faço uma analogia em relação ao que se garante por escrito e forma de Leis e o que se oferece a partir desse aos povos indígenas. Um exemplo mais que convincente são as demarcações dos territórios indígenas, desde 1988 até o presente momento, essa garantia está apenas descrita no papel. Enquanto isso, o Estado como aparato Legal empurra a canoa furada promovendo com isso os conflitos fundiários tão acesos nos últimos anos. Morrem indígenas, e o noticiário diz: Ah, são meros vagabundos e invasores. Mas peraí!! Invasores? Roubam nossas terras e ainda levamos conosco o crime de invasão em nossas próprias casas! Os territórios indígenas nacionalmente vivem em conflitos direto entre grandes pecuaristas, mineradores, garimpeiros, madeireiros e afins.”, comenta.
No último dia 16 de julho, numerosos indígenas, representando mais de 25 povos distintos do país, protestaram em frente à Esplanada dos Ministérios contra o Projeto de Lei 490/2007, que pretende dificultar a demarcação de novos territórios e facilitar a abertura de terras já demarcadas para exploração de recursos naturais. Em nota técnica, a Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) afirma que este projeto, além de inconstitucional, afronta decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Neste ato, os manifestantes também sofreram repreensão policial, com bombas de efeito moral e sprays de pimenta. De acordo com Linda Terena, o maior problema a ser resolvido para a população indígena brasileira é o próprio Estado. “O Estado brasileiro faz ou finge não ver o que está em cena, insiste em sua miopia cultural, econômica e política. As leis por exemplo que ampara o meio ambiente é um exemplar, tornou-se “falácia” à medida que não se respeita. Cria-se Projetos de Leis, PECs, e demais ordenamentos jurídicos para impedir o que já está garantido na Constituição Federal e dessa maneira seguem desconstruindo direitos indígenas, o direito à vida.”.
Em toda a América, os povos originários se conectam pela dor do genocídio e tomada de direitos. “A invasão conecta todos os povos, tanto originários quanto negros, de forma profunda. O genocídio e a resistência os conectam. Existe um ditado do povo Mapuche que diz ‘não só vivo, mas em pé’, que demonstra o espírito de luta deles.”, diz Karine Narahara, coordenadora do Núcleo de Estudos Ameríndios do Laboratório Geru Maa de Africologia e Filosofia Ameríndia do IFCS/UFRJ, “O povo mapuche é um povo-nação, possuem autonomia e acreditam que as pessoas não possuem um território, mas o território possui as pessoas. É daí que vem “mapuche”, que na língua deles significa “gente da terra”. Não estou muito a par das pautas da constituinte, mas creio que por acreditarem neste conceito de território eles provavelmente defendem a presença de um Estado Plurinacional, como existe na Bolívia.”. O investigador Luis Eugenio ainda diz: “Quando, visionariamente, a Alianza Territorial Mapuche se coloca a favor das reivindicações do povo chileno no Estallido Social como um povo de fora, naturalmente gera ao povo chileno o dever de reconhecê-los também como um povo diferente, com direitos. E isto se manifesta quando o povo chileno se levanta, tomando a bandeira mapuche como emblema de resistência.”. Assim como os povos originários chilenos, os brasileiros também lutam incansavelmente. “Me veio à mente, uma ilustração descrita pelo educador e filósofo Mario Sergio Cortela quando ele diz: ‘O animal sossegado, dorme’.” diz Linda Terena. “Creio que a resistência do meu povo, o Terena, assim como os demais, está nessa ilustração de Cortela, nunca sossegamos. Ao contrário, permanecemos incomodados e incomodamos muito o Estado brasileiro, desde séculos anteriores quando nossas tataravós viajavam sobre carreta com boi puxando por dias para dialogar com as autoridades competentes. A diplomacia foi e continua sendo um grande recurso para que nossa luta seja reconhecida e visibilizada ao menos, na medida em que não cremos ser priorizada.”.
Num domingo, 04 de julho, a acadêmica mapuche Elisa Loncón foi eleita presidente da Convenção Constitucional chilena, dando ainda mais esperança para os povos originários do país e de outras fronteiras, que lutam até hoje por uma diplomacia funcional que escute e leve em consideração suas reivindicações.