O governo Bolsonaro foi eleito com um programa baseado na figura do economista Paulo Guedes e no discurso de enxugamento do Estado. Grandes expectativas se formaram na esperança da recuperação econômica. Entretanto, a pandemia caiu como uma pedra e muitas promessas de campanha, inclusive favoráveis ao mercado, sequer saíram do papel – nenhuma privatização até hoje se concretizou.
Desde o primeiro ano de mandato, o presidente insiste na tecla de que o governo não tem recursos. Em janeiro de 2021, mesmo após mais de 7 milhões de infecções e 197 mil óbitos pela Covid-19, Bolsonaro disse: “Chefe, o Brasil está quebrado. Eu não consigo fazer nada”. Mas, para o economista e professor da FMU Marcos Henrique do Espírito Santo não é bem assim. “O Estado insiste na tese de que está sem dinheiro, o que é completamente falso. “O Estado tem capacidade de emitir moeda.”
A emissão tem limitações macroeconômicas, porém o cenário é tão crítico que, para o professor da FMU, justificaria uma ação como essa. “Não dá para emitir dinheiro a qualquer momento, mas em momentos como o que a gente vive, com uma economia completamente estagnada, seria ideal para fazer isso. Literalmente expandir a dívida pública para ter recursos e gastar enquanto o setor privado não está gastando”, aponta o economista.
O auxílio emergencial foi uma conquista para mais de 66 milhões de pessoas após a chegada da Covid-19. O valor proposto pelo governo, de R$ 200 mensais, foi fixado em R$ 600 somente após pressão da oposição. Medida possível graças ao ‘orçamento de guerra’ aprovado pelos congressistas, que abriu uma exceção para o governo gastar além do teto.
Os sucessivos erros e atrasos no enfrentamento à Covid-19 e a piora da situação social do país exigiram a continuidade do benefício, dessa vez nos valores de R$150 e R$ 375,00 definidos pela Câmara dos Deputados sob liderança de Arthur Lira (PP-AL), alinhado ao Planalto. Os novos valores resultarão em um gasto de R$ 44 bilhões, inferior aos cerca de R$ 295 bilhões dispendidos em 2020, de acordo com dados do TCU.
Para Camila Ugino, professora de ciências econômicas da PUC-SP, a nova versão do então chamado ‘corona voucher’ é simplesmente insuficiente. “A proposta do auxílio emergencial que a gente tem não condiz com a nossa realidade social, muito menos fiscal.”
O orçamento de 2021 foi sancionado no dia 23 de abril com cortes em áreas fundamentais, como educação (27%) e meio ambiente (24%). Menos de um mês depois, o jornal O Estado de São Paulo divulgou uma série de reportagens denunciando o esquema que destinou R$ 3 bilhões a parlamentares via emendas de relator, instrumento no qual relatores do projeto de lei orçamentária introduzem alterações, geralmente de caráter técnico. Porém, as reportagens demonstraram uma quebra das leis de impessoalidade, isonomia e transparência, e isso aconteceu às vésperas da eleição dos presidentes da Câmara e do Senado. As alterações feitas pela relatoria teriam beneficiado individualmente parlamentares, inclusive os da oposição.
Simultaneamente, no dia 13 de maio, uma portaria foi assinada pela Secretaria de Gestão e Desempenho do Ministério da Economia, permitindo o aumento, para além dos limites constitucionais, do salário de militares e reservistas e beneficiando, inclusive, o presidente e o vice-presidente da República. O aumento, de quase 70%, teve como justificativa a necessidade de “adequar o cálculo do teto remuneratório constitucional aos entendimentos do STF e TCU”. A medida custará R$ 66 milhões.
Ainda de acordo com o professor da FMU, a lógica neoliberal, do enxugamento do Estado e redução de recursos para áreas sociais, é totalmente insustentável. “A ideia de que o orçamento é mínimo parte do suposto neoliberal de que esse orçamento é limitado. O orçamento é uma peça de disputa política. Se a gente gastar pouco com a eliminação da pobreza é porque a gente escolheu politicamente isso.”
Vários países têm adotado medidas de resgate econômico e subsídio – em alguns casos antes mesmo da pandemia, para enfrentar o aumento das desigualdades. “O neoliberalismo está morto do ponto de vista teórico. Do ponto de vista da teoria econômica, ele não responde mais às exigências de um mundo novo, de alta tecnologia, do padrão 4.0”, afirma Marcos Henrique. Para o economista, o maior exemplo da presença do Estado como catalisador de avanço econômico é a China. Na visão de Marcos, o gigante asiático está “engolindo todo mundo”, e os Estados Unidos “sacaram” isso. “A China está se tornando gigante com metas de longo prazo, induzindo o empresariado, e os EUA vão fazer a mesma coisa. Eles fizeram isso no New Deal, eles fizeram isso após a Segunda Guerra Mundial”, acrescenta.
No país norte-americano, o governo Biden sancionou, em três meses à frente da Casa Branca, dois pacotes que somam US$ 4,15 trilhões – equivalentes a R$ 20,7 trilhões – para o enfrentamento à pandemia. O primeiro é um conjunto de recursos (US$ 1,9 tri) destinados às famílias mais pobres, incluindo extensão de seguro-desemprego e subsídio para planos de saúde. Entre as medidas, estão repasses aos estados e pagamento direto de US$ 1.400 à maioria dos americanos. O segundo pacote é um plano de investimentos em infraestrutura com fornecimento de internet nas áreas rurais do país, renovação de estradas e incentivo a pesquisa e desenvolvimento em energias limpas – financiado com o aumento do imposto corporativo.
Mas, no Brasil, a crença num modelo ultrapassado ainda é um entrave ao desenvolvimento. “Os meios mais eficientes para sair dessa cr0069se é romper essa lógica. Tem que romper com o discurso da Faria Lima, é preciso tirar o monopólio econômico. O Estado é um agente indutor fundamental. Ninguém se desenvolveu e se tornou gigante sem o Estado”, aponta o economista.
Na avaliação de Marcos Henrique, é preciso que haja um governo forte e que não esteja refém da burguesia brasileira, que, segundo ele, vive há 40 anos da exportação para ganhar dinheiro no mercado financeiro. Enquanto o governo precisa conter as despesas previstas, maiores que a receita, o Congresso, hoje com maior força, também exige sua fatia. “Se eu vou aumentar a despesa com os parlamentares, eu tenho que diminuir gastos com investimento e políticas sociais para poder fechar o orçamento com déficit pequeno, eu tenho que diminuir dos investimentos com gastos sociais”, afirma o economista Claudemir Galvani, professor de teoria econômica da PUC-SP.
“A dívida tem o limite que passa pelo Congresso. Na verdade, o governo (brasileiro) está muito preso ao Congresso, por isso é importante o governo ser forte. Hoje o presidente não tem nem partido”, afirma Galvani. Outro erro é o teto de gastos, estabelecido pela Emenda Constitucional 95, encaminhada pelo governo Michel Temer e promulgada pelo Senado em 15 de dezembro de 2016, que congela gastos públicos por 20 anos.
De acordo com Marcos Henrique, limitar o gasto público e colocar essa regra na Constituição foi uma violência, uma estratégia irracional do neoliberalismo, que posiciona a economia acima da política. E, assim, nenhum governo poderá alterar essa lógica mesmo que tenha sido eleito com projetos de aumento do gasto do Estado para a ampliação do desenvolvimento.
Para os economistas entrevistados, o caminho para sair da crise é ter uma responsabilidade fiscal sustentável, uma reforma tributária justa e que adote a progressividade – os impostos incidem proporcionalmente à renda do cidadão –, e uma reforma administrativa que reduza os gastos com o funcionalismo público, além de investimentos em educação, saúde e ciência. As urnas têm papel fundamental nisso.
Crédito da foto: A Fome Voltou. Lambe lambe em muro na Avenida Paulista, altura da rua Haddock Lobo. São Paulo, SP. 16 de abril de 2021. Foto: Roberto Parizotti/FotosPublicas. Disponível em: https://fotospublicas.com/a-fome-voltou-lambe-lambe-em-muro-na-avenida-paulista/