“O meu papel materno se vê com a necessidade de se adaptar até as coisas que eu considerava verdade, que eu achava que eram as minhas verdades, quando na realidade é algo imposto por uma sociedade patriarcal e binária.” Atuando como protetora da comunidade trans e travesti, a mãe é uma figura essencial para filhos em transição. A escritora e dramaturga Adélia Nicolete, autora do livro Manto da Transição, é uma dessas mães, escrevendo sobre a sua própria experiência e reunindo relatos de outras auto intituladas mães de trans.
Nicolete ressalta que a participação materna geralmente se faz mais constante do que aquela de outros membros da família: “Existem papéis que estão arraigados no nosso imaginário. Quando você fala de mãe naturalizamos que a palavra seja acolhimento”
“A gente passa a se relacionar de uma outra maneira, a pessoa em si é a mesma. Tem muitas mães, muitas famílias que afirmam ter passado pelo luto. Eu não vejo dessa maneira, porque a pessoa não morreu. O que existe é o luto das nossas expectativas, do que a gente imaginou que seria o futuro”, afirma Nicolete. Em 2014, aos 21 anos, seu filho Bernardo iniciou a transição de gênero. Isolada pela pouca visibilidade da pauta trans na mídia da época e como um modo de se “apropriar das próprias emoções”, Nicolete iniciou um diário, que mais tarde teria trechos inseridos na obra intitulada Manto da Transição: narrativas escritas e bordadas por uma mãe de trans. Uma escritora ávida, a dramaturga aprecia a prática do diário desde jovem. “O processo de pensar e sentir, quando ele passa pela palavra, ele ganha uma concretude que depois eu posso lidar com ela, como se fosse exterior a mim”, afirma a autora.
Manto consiste em dois cadernos, intitulados Reinaldo e Orlando. Reinaldo tem seu nome inspirado pelo personagem lido como transgênero na obra Grande Sertão: Veredas, Diadorim. Já Orlando é o nome do livro homônimo de Virginia Woolf, que também aborda a vivência trans. No primeiro caderno, encontram-se trechos do diário da autora e relatos de outras mães cujos filhos transicionaram. Já o segundo caderno conta com imagens e textos descritivos de peças de roupas que eram utilizadas na infância do filho, mas foram “ressignificadas pelo bordado”, se transformando com a ajuda das mãos ágeis de Nicolete em símbolos da expressão de gênero de Bernardo.
Atualmente, a autora faz parte de um movimento para pessoas da comunidade LGBTQIAPN+. “Eu faço parte agora do Mães pela Diversidade, é recente. Eu vejo que é um ambiente muito acolhedor para as mães, e digo mães porque a maioria das pessoas que procuram são elas. Existem pais também, mas são poucos. Existe um acolhimento muito grande, e é um espaço, desde que você participe, em que você pode falar, você pode desabafar.” Em junho de 2024, a conta no Instagram do Mães (@maespeladiversidade) conta com mais de 120 mil seguidores.
Observando a experiência de sua mãe em relação ao seu processo de transição, a jovem Lívia Estrella, de 18 anos, relata que percorreu altos e baixos. “Eu ficava triste com a minha mãe, pois a minha avó “aceitou” de primeira, nunca mais me chamou de forma errada, mas a minha mãe parecia estar resistindo. Ela sempre me apoiou, me deixava usar a roupa que queria e me emprestava maquiagem, porém quando eu citava o meu desconforto com o nome, ela se colocava como vítima, dizendo que era difícil para ela e que também era um processo”.
Lívia iniciou o processo em meados de 2023, e em três meses já havia compartilhado sua identidade com todos que conhecia. "Eu vivi grande parte da minha vida com a minha mãe, meu pai nunca foi uma pessoa presente em minha vida, então, eu e minha mãe sempre tivemos uma relação muito próxima, sempre confiei nela em tudo e ela também sempre confiou em mim." Atualmente, a estudante cursa pedagogia na Universidade Federal de Ouro Preto, vivendo em uma república feminina na cidade. Mesmo não compartilhando mais a mesma casa, a mãe é hoje uma figura de acolhimento para Lívia. “Eu sentia que não podia confiar mais nela, porém com o tempo, a gente ficou muito bem! Agora ela me ajuda bastante, ela me empresta muitas roupas, ela paga e me leva nas minhas consultas com o meu endocrinologista, ela me dá presentes “femininos”, mas na época em que eu estava me descobrindo, ela estava em seu próprio processo.”
A dificuldade inicial apresentada pela mãe de Lívia não é incomum, já que a transição de um filho acaba sendo uma transição para a família toda. “Não é de uma hora para a outra que a compreensão acontece, a gente vai se adaptando ao longo do tempo. Acho que existe alguma coisa no cérebro que está condicionada por tantos anos. A primeira coisa é segurar essa pessoa junto de você, até você compreender.”