“Acolhimento pode fazer diferença entre vida e morte”, afirma mãe de homem trans

No país com maior número de mortes trans no mundo pelo 14° ano consecutivo, a figura materna segue sendo referência para a comunidade
por
Giovana Laurelli
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13/06/2024 - 12h
Capa de livro com o título "Manto da Transição", no topo, o nome da autora Adélia Nicolete. Fundo alaranjado, com uma imagem bordada de um corpo com um binder (peça utilizada por homens trans)
Capa de Manto da Transição: narrativas escritas e bordadas por uma mãe de trans (Foto: Divulgação/Alpharrabio Edições)

 

“O meu papel materno se vê com a necessidade de se adaptar até as coisas que eu considerava verdade, que eu achava que eram as minhas verdades, quando na realidade é algo imposto por uma sociedade patriarcal e binária.” Atuando como protetora da comunidade trans e travesti, a mãe é uma figura essencial para filhos em transição. A escritora e dramaturga Adélia Nicolete, autora do livro Manto da Transição, é uma dessas mães, escrevendo sobre a sua própria experiência e reunindo relatos de outras auto intituladas mães de trans.

Nicolete ressalta que a participação materna geralmente se faz mais constante do que aquela de outros membros da família: “Existem papéis que estão arraigados no nosso imaginário. Quando você fala de mãe naturalizamos que a palavra seja acolhimento”

Dramaturga Adélia Nicolete: uma mulher branca, de cabelo ondulado, olhos castanhos, sorriso largo e blusa vermelha escuro.
A escritora (e mãe) Adélia Nicolete (Foto: Divulgação/ Alpharrabio Edições)

“A gente passa a se relacionar de uma outra maneira, a pessoa em si é a mesma. Tem muitas mães, muitas famílias que afirmam ter passado pelo luto. Eu não vejo dessa maneira, porque a pessoa não morreu. O que existe é o luto das nossas expectativas, do que a gente imaginou que seria o futuro”, afirma Nicolete. Em 2014, aos 21 anos, seu filho Bernardo iniciou a transição de gênero. Isolada pela pouca visibilidade da pauta trans na mídia da época e como um modo de se “apropriar das próprias emoções”, Nicolete iniciou um diário, que mais tarde teria trechos inseridos na obra intitulada Manto da Transição: narrativas escritas e bordadas por uma mãe de trans. Uma escritora ávida, a dramaturga aprecia a prática do diário desde jovem. “O processo de pensar e sentir, quando ele passa pela palavra, ele ganha uma concretude que depois eu posso lidar com ela, como se fosse exterior a mim”, afirma a autora.

 

Manto consiste em dois cadernos, intitulados Reinaldo e Orlando. Reinaldo tem seu nome inspirado pelo personagem lido como transgênero na obra Grande Sertão: Veredas, Diadorim. Já Orlando é o nome do livro homônimo de Virginia Woolf, que também aborda a vivência trans. No primeiro caderno, encontram-se trechos do diário da autora e relatos de outras mães cujos filhos transicionaram. Já o segundo caderno conta com imagens e textos descritivos de peças de roupas que eram utilizadas na infância do filho, mas foram “ressignificadas pelo bordado”, se transformando com a ajuda das mãos ágeis de Nicolete em símbolos da expressão de gênero de Bernardo.

 

Da esquerda para a direita: vestido infantil de cores claras com palavras bordadas, jaqueta jeans verde com bordados, vestido infantil branco com bordados em tule
Roupas da infância de bernardo são transformadas em representação física da aceitação materna (Fotos: Divulgação/ Alpharrabio Edições)

 

Atualmente, a autora faz parte de um movimento para pessoas da comunidade LGBTQIAPN+. “Eu faço parte agora do Mães pela Diversidade, é recente. Eu vejo que é um ambiente muito acolhedor para as mães, e digo mães porque a maioria das pessoas que procuram são elas. Existem pais também, mas são poucos. Existe um acolhimento muito grande, e é um espaço, desde que você participe, em que você pode falar, você pode desabafar.” Em junho de 2024, a conta no Instagram do Mães (@maespeladiversidade) conta com mais de 120 mil seguidores.

Adolescente trans Lívia Estrella: mulher branca, de cabelo castanho e cacheado com franja, sombra e batom rosa.
Lívia Estrella, em frente à república estudantil que habita (Foto: Acervo Pessoal)

Observando a experiência de sua mãe em relação ao seu processo de transição, a jovem Lívia Estrella, de 18 anos, relata que percorreu altos e baixos. “Eu ficava triste com a minha mãe, pois a minha avó “aceitou” de primeira, nunca mais me chamou de forma errada, mas a minha mãe parecia estar resistindo. Ela sempre me apoiou, me deixava usar a roupa que queria e me emprestava maquiagem, porém quando eu citava o meu desconforto com o nome, ela se colocava como vítima, dizendo que era difícil para ela e que também era um processo”.

Lívia iniciou o processo em meados de 2023, e em três meses já havia compartilhado sua identidade com todos que conhecia. "Eu vivi grande parte da minha vida com a minha mãe, meu pai nunca foi uma pessoa presente em minha vida, então, eu e minha mãe sempre tivemos uma relação muito próxima, sempre confiei nela em tudo e ela também sempre confiou em mim." Atualmente, a estudante cursa pedagogia na Universidade Federal de Ouro Preto, vivendo em uma república feminina na cidade. Mesmo não compartilhando mais a mesma casa, a mãe é hoje uma figura de acolhimento para Lívia. “Eu sentia que não podia confiar mais nela, porém com o tempo, a gente ficou muito bem! Agora ela me ajuda bastante, ela me empresta muitas roupas, ela paga e me leva nas minhas consultas com o meu endocrinologista, ela me dá presentes “femininos”, mas na época em que eu estava me descobrindo, ela estava em seu próprio processo.”

 

A dificuldade inicial apresentada pela mãe de Lívia não é incomum, já que a transição de um filho acaba sendo uma transição para a família toda.  “Não é de uma hora para a outra que a compreensão acontece, a gente vai se adaptando ao longo do tempo. Acho que existe alguma coisa no cérebro que está condicionada por tantos anos.  A primeira coisa é segurar essa pessoa junto de você, até você compreender.”