Por Julia Sena
No Brasil, onde a desigualdade atravessa desde as calçadas até o acesso digital mais básico, a tecnologia tem se mostrado uma aliada fundamental para pessoas com deficiências físicas. Por trás dos dispositivos e softwares, porém, existem histórias humanas que dão luz à urgência e à profundidade do tema. Entre as vozes mais importantes nessa discussão estão Cid Torquato, referência nacional em acessibilidade, e Lucas Moreira, representante do Instituto Dorina Nowill, organização que há décadas promove autonomia para pessoas com deficiência visual.
Cid Torquato desempenha um papel fundamental na promoção da acessibilidade por meio da tecnologia, enquanto secretário municipal da Pessoa com Deficiência em São Paulo em 2017, ele liderou a criação de um grupo de trabalho na ABNT que resultou na norma NBR 17060, que define requisitos de acessibilidade para sites e aplicativos. Ele também coordenou a tradução das Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdo Web para o português, garantindo que as melhores práticas internacionais de usabilidade digital sejam mais acessíveis no Brasil. Além disso, é CEO do ICOM, plataforma de atendimento por videochamada em Libras, que promove a inclusão digital das pessoas surdas. Em 2025, ele participou do lançamento da ABNT NBR 17.225, norma que reforça ainda mais a regulação da acessibilidade digital em sites, e contribuiu para a criação do Núcleo de Inovação em Acessibilidade na InovaUSP. Por fim, ele coordena o “Guia Prático de Acessibilidade e Inclusão Digital”, destinado a orientar práticas de desenvolvimento digital mais inclusivas.
Cid costuma afirmar que acessibilidade não deve ser tratada como concessão e sim como fundamento, sua trajetória pessoal sustenta essa visão. Paraplégico após um acidente, ele vivencia diariamente o impacto das barreiras arquitetônicas, digitais e comportamentais que ainda restringem milhões de brasileiros. Ao longo da carreira pública, seja como secretário municipal ou estadual da Pessoa com Deficiência, ajudou a construir políticas estruturais que buscavam tornar São Paulo uma cidade mais inclusiva, com transporte mais acessível, serviços digitais utilizáveis por todos e espaços públicos que dialogassem com a diversidade dos corpos. Em suas reflexões, ele retorna sempre ao ponto de que tecnologia é cidadania. Quando um site não funciona em leitores de tela, alguém perde acesso a um direito. Quando um aplicativo não permite navegação por teclado, alguém é excluído de uma experiência coletiva. Para ele, acessibilidade digital deve ser encarada com a mesma seriedade que outros serviços essenciais, porque sem ela não existe participação plena nas esferas pública e privada.
Enquanto Cid atua na linha das políticas públicas, Lucas Moreira e a Fundação Dorina Nowill trabalham na base concreta da inclusão. A instituição, criada há mais de 70 anos, tornou-se referência ao unir Educação, Tecnologia e Autonomia para pessoas cegas e com baixa visão. É na gráfica de braille da Dorina que os livros escolares ganham relevo e passam a garantir que crianças e jovens estudem com igualdade de condições. É também lá que materiais diversos são convertidos para formatos acessíveis, como braille, áudio e fonte ampliada, ampliando o alcance da informação de maneira estruturada e contínua.
Lucas destaca que a missão da Fundação nunca foi apenas entregar ferramentas, mas criar condições reais de independência. Um livro em braille não é apenas um suporte de leitura, mas uma porta aberta para que um aluno participe da aula, interaja com colegas, faça provas e projete um caminho profissional. A tecnologia assistiva, nesse sentido, não é acessório, mas um dispositivo de autonomia. Ele ressalta também a importância das formações que a Dorina oferece para empresas e educadores, pois a inclusão não se sustenta apenas do lado de quem precisa dela, mas também do lado das instituições que devem garanti-la. Os projetos da Dorina mostram como inovação e sensibilidade podem caminhar juntas. Entre eles estão a produção de audiolivros acessíveis, cursos de alfabetização com LEGO Braille Bricks e consultorias que orientam organizações a revisarem conteúdos e plataformas digitais com foco na experiência de pessoas com deficiência visual. Esse trabalho parte de um princípio fundamental, a inclusão exige técnica, continuidade e responsabilidade.
A relação entre o trabalho de Cid e o da Dorina evidencia que acessibilidade é um conceito vivo e multifacetado. Envolve políticas públicas, cultura digital, tecnologia assistiva e transformação social. Apesar dos avanços, o cenário ainda apresenta desafios significativos. Muitas soluções tecnológicas seguem inacessíveis devido ao custo ou à falta de difusão. A capacitação de profissionais também é urgente. Não basta que um site declare ser acessível. É preciso que designers, desenvolvedores e lideranças sejam formados para construí-lo com acessibilidade desde a primeira linha de código.
Além das barreiras técnicas, existem aquelas que não se enxergam, preconceitos, desinformação e resistência cultural. A tecnologia pode abrir portas, mas é a sociedade que precisa permitir que elas permaneçam abertas. Narrativas como a de Cid e práticas como as do Instituto Dorina ajudam a provocar essa mudança ao mostrar que inclusão é feita de pessoas, de trajetórias e de escolhas políticas e coletivas. O futuro da acessibilidade passa por inovações que já estão em desenvolvimento, como inteligência artificial capaz de descrever ambientes, dispositivos de mobilidade inteligentes e interfaces que independem de visão ou tato para uso completo. Mas como lembram os entrevistados, nenhuma inovação faz sentido se não estiver ancorada em dignidade humana.
Acessibilidade, no fim, é sobre autonomia e pertencimento. É sobre garantir que toda pessoa, com ou sem deficiência, encontre na cidade, na escola, no trabalho e na internet um espaço que reconheça sua existência sem pedir adaptação forçada. O trabalho de Cid Torquato e Lucas Moreira demonstra que a tecnologia tem papel essencial nessa construção. Mas o que sustenta essa transformação continua sendo profundamente humano.