No dia 20 de abril de 2023, o Sport Club Corinthians Paulista fechou a contratação do técnico Cuca, substituindo Fernando Lázaro. Apenas seis dias depois, o ex-jogador que tinha contrato até o fim do ano, pediu demissão do clube paulista, alegando não estar pronto e não entender a situação e pressão na qual se encontrava no comando do clube. Para o Rodrigo Bueno, jornalista da ESPM Brasil, "Cuca foi praticamente obrigado a sair por conta dos protestos dos torcedores, sobretudo das torcedoras. Hoje em dia não se permite mais algumas coisas como antigamente, a sociedade evolui nesse sentido".
Acontece que a pressão da torcida do Corinthians e de atletas femininas do próprio clube se deve ao fato de Cuca ter se envolvido em um crime, no ano de 1987, mais especificamente o crime de estupro de vulnerável. Na época, Cuca e mais três jogadores do Grêmio naquela ocasião, Eduardo Hamester, Henrique Etges e Fernando Castoldi foram detidos durante uma excursão do time gaúcho em Berna, na Suíça. No depoimento prestado pela menor de idade, ela diz ter subido no quarto dos atletas, no hotel que estavam, para pedir uma camisa do Grêmio, em seguida eles teriam expulsado alguns colegas que subiram junto com ela e mantido relações sexuais forçadas por cerca de 30 minutos. Detidos em Berna, ficaram presos por quase um mês, até prestarem seus depoimentos e serem mandados de volta para o Brasil. Os jogadores foram pegos no artigo 187 do código penal Suíço, porém, apesar de todas as acusações, Cuca nunca foi preso, o que gera revolta em milhares de pessoas até hoje, colocando em jogo a carreira de Cuca como técnico do Corinthians, deixando o cargo em menos de uma semana.
Foto: Rodrigo Coca / Agência Corinthians
Em entrevista para AGEMT, Flávio Gomes, jornalista do UOL Esporte, diz que houve um certo tipo de negligência da imprensa em relação a esse caso. Esse assunto não ser discutido com a devida importância é um erro claro de toda a classe jornalística. O episódio caiu totalmente no esquecimento, mas com os casos recentes de estupro do Daniel Alves e do Robinho, ganhou uma grande repercussão. A demora da imprensa para cobrir esse caso talvez tenha sido por conta da juventude de uma boa massa dos jornalistas esportivos atuais que simplesmente não tinha o conhecimento claro desse incidente, e os que sabiam não deram a devida importância, se esqueceram ou porque acharam que essa situação ficou no passado, o que para o Flavinho é um equívoco, já que o assunto merece uma reflexão pública, com um olhar mais atual e contemporâneo.
Como já era de se esperar, em meio a suas acusações, a torcida do Corinthians se revoltou com o anúncio do clube, foram as redes sociais se posicionar contra a contratação do técnico, relembrando o episódio do crime cometido e comparando uma contratação tão absurda com a história do próprio clube. Torcidas organizadas e torcedores comuns não perdoaram o acontecido pichando o muro da sede social do clube, com frases do tipo: “Queremos títulos, não estuprador”, “fora cuca” e “diretoria incompetente”. As atletas de futebol feminino do Corinthians, também tiveram participação crucial no pedido de demissão de Cuca, juntamente com o treinador Arthur Elias prestaram seus protestos por meio de uma nota conjunta, elas afirmaram que o projeto do próprio Corinthians, o “Respeita As Mina” não é uma frase qualquer, mesmo sem citar o nome de Cuca, deixaram claro a indignação em meio a contratação do novo técnico. Cuca afirma que não teve participação nenhuma no caso e já declarou que é inocente e que não houve estupro, mesmo que o advogado Willi Egloff (representante da garota na Suíça, em 1987) tenha afirmado que a menina o reconheceu como um dos agressores na ocasião, além de terem provas concretas de que o sêmen de Cuca foi encontrado na garota. Durante a coletiva de apresentação, o treinador disse que ignorou os protestos da torcida: “Eu não sou do mal. Quiserem tentar fazer isso. Eu sei que amanhã vai ter gente querendo meter o pau de volta, mas eu vou fazer o que? Eu não tenho o que fazer. Eu não tenho que pedir desculpas pelo que eu não fiz”, diz Cuca.
A passagem de Cuca pelo Corinthians foi rápida e nada memorável, para muitos torcedores, a contratação deixa uma mancha na história do clube conhecido por suas lutas como a “Democracia Corinthiana” e seus projetos como o “Respeita As Mina” que foram de certa forma ignorados pela diretoria atual do clube. Após a partida de volta da Copa do Brasil contra o time do Remo, na Neo Química Arena, Cuca pediu demissão de seu cargo e afirmou: “É a pior coisa que um homem pode passar. Quando está em xeque a dignidade dele”. Duílio, presidente do Corinthians e responsável pela contratação do técnico disse não se arrepender de ter o contratado e lamentou sua saída precoce, Cuca tinha contrato até o fim do ano, porém, não suportou a pressão.
Com esse escândalo de Berna finalmente vindo à tona, e mais outros casos como o do lateral direito do América Mineiro, Marcinho e do volante do Flamengo, Erick Pulgar, onde ambos atropelaram suas vítimas e fugiram do local do acidente sem prestar ajuda a essas pessoas, traz uma reflexão para o mundo da bola e para a sociedade. Os técnicos e jogador podem fazer o que bem entender e mesmo cometendo crimes, vão continuar trabalhando no futebol brasileiro?
Rodrigo Bueno afirma: “esses casos podem acontecer com qualquer pessoa, mas há mais holofote quando tem jogadores ou figuras públicas na história. Hoje não dá para dizer que o futebol não se importa com casos desse tipo. As carreiras de todos os citados já tiveram prejuízo por conta dos crimes cometidos. A tendência é isso ser ainda maior a partir de agora. O futebol está inserido na sociedade. Na medida em que ela cobra e exige mais a punição dos culpados, devemos ver mais casos de afastamentos, rescisões e dispensas de profissionais do futebol.”, ele ainda complementa: “acho que temos que mudar o tempo verbal. Por que antigamente jogadores condenados continuavam tranquilamente suas carreiras? Hoje em dia vemos que não é fácil continuar empregado com condenação e reputação manchada. A resposta é que no passado não havia tantos protestos, não se cobrava tanto uma postura exemplar como hoje, o futebol era visto muito como um elemento à parte na sociedade, eram admitidas mais ofensas e transgressões em campo e no seu entorno. Racismo e homofobia, por exemplo, eram comuns nos estádios e isso tudo, de forma equivocada, pouco era combatido. Com a chegada da internet e das mídias sociais, a informação circula mais rapidamente, há mais exposição, há mais ferramentas para apontar culpados, agressores e abusadores. Não há como esconder muito um caso como esse de Berna em 1987 nos dias de hoje. Esses atletas atualmente dificilmente escapariam da cadeia e não cumpririam suas penas. Veja o Daniel Alves onde está neste momento. Robinho pode ser preso, por isso que esse não é um tema apenas do futebol. Quem comete um crime, seja quem for, deve cumprir sua pena e depois ser integrado de alguma forma à sociedade. Assim é possível atletas e treinadores pagarem por seus crimes e darem depois sequência às suas carreiras, como qualquer outro cidadão.”
Flavinho também deu a sua opinião: “A sociedade mudou, assim como o universo do futebol. Hoje em dia esses crimes têm sim a sua devida importância, portanto os criminosos estão perdendo seu espaço. Mas é claro que essa barreira precisa ser totalmente quebrada dentro do esporte, e principalmente no futebol, que é um ambiente muito conservador, reacionária, leniente a determinados atitudes e crimes quando são cometidos por pessoas que pertencem a determinadas classes sociais. A sociedade está mais atenta e menos disposta a perdoar esse tipo de atitude, não tem como ignorar crimes pelos simples fatos do atleta ou técnicos pertencerem ao mundo do futebol.”, ele conclui falando: certamente os dirigentes vão pensar muito mais agora antes de contratar profissionais com condenações ou com imagem ligada a alguma forma de violência. Isso também já é visto em outras áreas, o mundo corporativo está cada vez mais exigente no combate a todas as formas de violência. acho sempre bom, em qualquer área, pesquisar o passado de um profissional. Para contratar qualquer serviço, normalmente pedimos indicações, informações e referências. Por que seria diferente no esporte? Hoje em dia valoriza-se muito a inteligência emocional, profissionais que saibam ter postura e controle mesmo em situações complicadas. O futebol já é assim faz algum tempo também. Há profissionais em alguns clubes que traçam um perfil psicológico e comportamental dos jogadores e dos treinadores. Isso é parte importante hoje em processos de contratação, portanto raramente veremos equipes contratando ou mantendo abusadores e agressores em seus elencos”.