30 Anos de Cracolândia

Quando surgiu o crack em São Paulo? E a 'Cracolândia'? O que dizem os psiquiatras?
por
Pedro Laigalini
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23/06/2022 - 12h

Por Pedro Guimarães Labigalini

 

O que hoje chamamos de centro-velho já foi palco de diversas transformações sociais, diásporas, movimentos de industrialização e, depois, de acentuada gentrificação. A verdade é que o solo entre a Avenida São João e a Alameda Cleveland protagoniza a história da cidade de São Paulo, e esboça, invariavelmente, um reflexo, da urbanização paulista. Até o início da década de 30, o fluxo econômico de São Paulo, e até mesmo grande importância das movimentações financeiras nacionais, corriam entre a Santa Cecília e a Catedral da Sé. É justamente com a quebra da bolsa de Nova Iorque, em meados de 1930, que ocorre a debandada empresarial do centro. Empresas, rádios, televisões e bancos migram da região central, e partem para o logradouro de mais altitude: a Avenida Paulista.

Mas, para compreender com eficácia as dinâmicas habitacionais da área em apreciação, devemos retornar à 1878, quando o empresário suíço Frederico Glete e o alemão Victor Nothmann, arremataram grande terreno na circunvizinhanças da ainda incipiente São Paulo, e repartiram a terra em lotes para dar fundação a grandes mansões. Ali, ergueu-se o primeiro bairro planejado da cidade, onde se aportaram vultosos industriais e o baronato cafeeiro, haja vista a boa localização assegurada para as viagens de tratativas negociais. Esse empreendimento tem marcantes traços e influências dos mestres-de-obra e artesãos portugueses, italianos e espanhóis que foram empenhados  na construção civil.

O bairro manteve essa atmosfera do baronato até a, já mencionada, quebra da bolsa de Nova Iorque. Quando ocorre o capital sobe a colina e se instala na Av. Paulista, as grandes mansões começam a dar espaço a cortiços, e os habitantes dos Campos Elíseos passam a ser, majoritariamente, parte do proletariado de uma cidade que aportava indústrias no seu recinto residencial. Ocorre que muitas estruturas foram mantidas, e edifícios sobreviveram à industrialização, de forma que a Prefeitura decidiu, por meio do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), tombar as características urbanísticas do perímetro, em 1986.

CRACOLÂNDIA

 

Apesar do tombamento conferido pela municipalidade, a degradação dos Campos Elíseos teria início quatro anos depois, e não seria através do esmorecimento da identidade urbana, mas através de um fenômeno social  sintomático.

De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. do Ministério da Justiça e Segurança Pública o crack surgiu nos Estados Unidos na década de 1980 em bairros pobres de Nova Iorque, Los Angeles e Miami. O baixo preço da droga e a possibilidade de fabricação caseira atraíram consumidores que não podiam comprar cocaína refinada, mais cara e, por isso, de difícil acesso. Aos jovens atraídos pelo custo da droga juntaram-se usuários de cocaína injetável, que viram no crack uma opção com efeitos igualmente intensos, porém sem risco de contaminação pelo vírus da Aids, que se tornou epidemia na época.

Em oitenta e seis, ano que o CODEPHAAT conferiu proteção ao bairro, o crack ainda não era conhecido no Brasil. O primeiro relato da droga data de 22 de julho de 1990. A Polícia Militar teria apreendido um jovem com pouco mais de 200 gramas, na zona leste de São Paulo. No início, o consumo acabou se concentrando, em grande parte, naquele lado da cidade. Até que uma disputa entre os traficantes deslocou o fluxo de vendas para a região da Luz.

Em 1988, o Terminal Rodoviário da Luz havia sido desativado. Sem-tetos e pessoas em situação de rua habitaram o complexo no primeiro momento. Quando ocorre, porém, a mencionada diáspora do tráfico, em movimento semelhante ao que ocorrera com o capital nos anos 30, a região é tomada pela presença dos usuários e pela “cena aberta de uso de drogas”.

A primeira vez que o termo apareceu no vocabulário escrito remete a 1995, em reportagem do Estadão que tratava da inauguração da Delegacia de Repressão ao Crack . A concentração para consumo, desde lá, foi apenas aumentando. Até que em 2005, a gestão municipal de José Serra deu estopim às ações:

Serra desligou bares e hotéis associados ao tráfico da região, tentou retirar aqueles em situação de rua da região, e declarou imóveis como sendo de “Utilidade Pública”, para viabilizar a desapropriação. As medidas não surtiram efeito significativo nenhum.

Em 2007, a gestão era de Gilberto Kassab. Promoveu o programa “Nova Luz”, que renunciava 50% da cobrança de IPTU da região, e 50% do ISS. Apesar de beneficiar, notadamente, os menos vulneráveis, a ação também não provocou grandes alterações nas estruturas já estabelecidas de degradação urbano-social que agora assolavam os arredores da Rua Helvétia.

Diante do pujante insucesso das políticas de Kassab, o Governo Estadual se levantou da cadeira, e Geraldo Alckmin foi quem deu início a uma política que correu paralela e conjuntamente às empreitadas municipais, o Programa Recomeço.

O Recomeço contou, em sua elaboração, com a participação do médico psiquiatra da Unifesp, Ronaldo Laranjeiras.  Com Ph.D na Inglaterra, e prática conhecidamente mais conservadora, ele concedeu entrevista a esta reportagem, que será reproduzida mais adiante. Ele foi um dos responsáveis pela implementação dos CRATOD’s (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas), que acolhe os usuários na Rua Prates.

De acordo com o Portal do Governo do Estado, “as mães dos pacientes procuram orientação no chamado ‘Recomeço Família’, um braço do Programa Recomeço. (...)
Muitos dos pacientes recebem ali mesmo o encaminhamento para o tratamento, de acordo com o seu quadro e nível de intoxicação. Além das Comunidades Terapêuticas, eles podem ser direcionados também a uma avaliação médica ou, em casos menos graves, para um Caps do município ou da própria instituição.”

A ação chegou a atender mais de 3.000 pessoas por dia em todo o estado paulista, e, apesar de também oferecer assistência social e atendimento ao paciente, recebeu tantas opiniões contrárias quanto pacientes.

As críticas recaem, em sua maioria, no direcionamento às Comunidades Terapêuticas. A psiquiatria parece não ter entendimento sedimentado e único a respeito do tratamento de dependência química. Mas duas frentes se ressaltam nas políticas de saúde pública lançadas nas últimas décadas.

A primeira caminha pela via da internação e afastamento do usuário. A outra anda ao lado da assistência social e redução de danos. Esta segunda teve expressividade em alta quando embasou o programa Braços Abertos, com Fernando Haddad à frente da Prefeitura em 2014. O programa foi coordenado pelo psiquiatra Dartiu Xavier, colega de casa de Laranjeiras, também da Unifesp. Usuários de crack eram acolhidos em hotéis e a Prefeitura tentaria promover alimentação, assistência médica e trabalho. Aqueles que varriam as ruas passaram a receber R$ 15 reais.

As ações foram desmontadas quando João Dória assumiu. Em meados de 2016 pediu à justiça a internação compulsória de mais de 400 usuários de crack da região. O Ministério Público entendeu a ação da prefeitura como improcedente, e a justiça rejeitou o pedido.

Concorrentemente ao Programa Recomeço, estadual, Dória lançou o Redenção, que ficou marcado por uma grande intervenção policial que tomou as ruas do centro, no mesmo 21 de maio em que acontecia a Virada Cultural. Se, naquele momento, houve uma pulverização dos usuários, não demorou uma semana até que se concentrassem novamente, desta vez no preciso endereço da R. Helvétia. Ali permaneceram, e assim mantiveram-se os esforços do Poder Público. Até o presente ano de 2022, em que ocorreu a ocupação da Praça Princesa Isabel, e a consequente operação policial que retirou os usuários e cercou a praça para as reformas a agendadas alguns meses antes.

A movimentação de pessoas que usam e traficam drogas a céu aberto voltou a crescer na região da Cracolândia, no centro de São Paulo, após dois anos de queda. A média de frequentadores chegou a 579 pessoas por dia de janeiro a setembro de 2021, número 21% maior do que o registrado no mesmo período em 2019 (478) e 14% maior que em 2020 (506).

A prefeitura, no primeiro dia de ações de zeladoria, retirou onze toneladas de lixo em duas rodadas de limpeza na Princesa Isabel. O que leva a subprefeitura da Sé, responsável por aquele território, ao pódio das despesas em varrições e limpeza de calçadas.

Se a manutenção do espaço é, ora, tão custosa, e sequer há retorno fiscal para a Prefeitura, por quê não encontramos soluções efetivas até o momento? A medicina parece tampouco ter uma resposta. Ou tem respostas, mas elas são bastante idiossincráticas. 

 

O QUE DIZ A MEDICINA?


 Ronaldo Laranjeiras concedeu entrevista a esta reportagem quando dos mais recentes fatos acerca da mudança para a Princesa Isabel.

Do consultório de sua clínica de dependência, Ronaldo conversou via zoom. Ao fundo, as estantes de livros eram atingidas pela luz do sol vespertino, que entrava por uma ampla janela. De sua mesa, respondeu descontraidamente às perguntas, e o trecho de maior relevância está aqui transcrito.

Na sua visão, onde está a ponta do novelo pra gente desatar esse nó da ‘Cracolândia’? São 30 anos de Políticas Públicas, o senhor inclusive participou do Programa Recomeço e disse que foi descontinuado. Mas onde o Poder Público, e talvez nós, como sociedade, estamos errando e o que estamos deixando de encontrar para desatar esse nó?

“Acho que você tem que saber que são várias populações que estão na cracolândia. Você tem ali a população de rua que não usa drogas; você tem a população de rua com transtornos mentais severos; e você tem pessoas usuários de drogas, eventualmente com transtornos mentais; e tem usuário que fica de passagem, que não é frequentador da cracolândia, mas vai, passa, fica naqueles hotéis.

Então, o ponto central é que você não teve uma política que levasse em consideração essa complexidade. E tem um pilar central aí que é o crime organizado, que ganha 9 milhões, no mínimo, por mês. É uma empresa que fatura nove milhões por mês; não existe isso. Você tem a feirinha de objetos roubados ali. Você pergunta pros usuários como eles consegue dinheiro, se a pessoa não trabalha, é por roubo, fruto, prostituição.

Então, a política pública, ela é muito pontual e muito frágil pra lidar com essa complexidade. Isso é válido aqui em São Paulo, lá em São Francisco, Los Angeles. Enquanto a política pública não levar essa complexidade... e não são os moradores de ruas só, ‘puros’ (apenas), tem o crime organizado que se beneficia. (...)

(...)Então a política falha porque ela não leva em consideração essa complexidade. Aí fica num debate muito pobre, ao meu ver: ‘vamos internar todo mundo, ou vamos prender todo mundo’. Eu acho o debate meio pobre. Acho que não vai ser uma solução única, você prender ou internar. Ou dar casa para todo mundo.

É não levar em consideração a complexidade da política para uma população muito vulnerável. Porque tem gente que sai da prisão, a gente tem esse dado, não tem para onde ir, e vai pra cracolândia. Ou então a família não aguenta mais o cara usar crack, manda embora, e ele vai lá pra cracolândia. E ele é se abrigado, de alguma forma, pelo crime organizado, acaba tendo alguma função dentro da cadeia de venda de drogas, nos pequenos roubos e furtos.

Então tem uma complexidade, todo mundo ‘ah, vamos fazer prevenção’, aí a pessoa acha que uma ação de prevenção, qualquer que seja, vai resolver essa complexidade.

O que eu acho...  é uma ingenuidade! Ou eu estou velho, (risadas) e com bastante tempo de cadeira, (por isso) não acredito nessas ingenuidades. (...)

(...)O Prefeito, ao meu modo de ver ver, deveria se reunir com a Câmara de vereadores, com o Ministério Público, com a Defensoria Pública, e ter um consenso do que fazer. De qual setor fazer. É saúde, é social? Isso é parte do governo... e então fazer uma política consensual do que fazer com a cracolândia. Essas medidas unilaterais e isoladas, elas tem um efeito imediato (...) mas se não tiver uma dimensão, se achar que ‘do prefeito’. Se tiver um cara que vai ser o ‘xerife’ da cracolândia, está  fadada ao erro.(...)”

 

Esta é a visão de um médico com prática e postura mais conservadoras, e anteriores a que é encampada posteriormente por, e tem como maior expoente o coordenador do Braços Abertos, Dartiu Xavier. Dartiu segue a linha da Redução de Danos. Foi procurado por esta reportagem, que não obteve respostas. Para Xavier, que coordena o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Unifesp (PROAD), conforme entrevista ao portal UOL: “os modelos mais repressivos e coercitivos fracassaram no mundo inteiro”. Internar o usuário, retirando-o de seu ambiente para o tratamento, não produz efeitos a longo prazo, mesmo com recursos financeiros, porque a droga "não é causa, é consequência”. Ele afirma também que, o usuário ficar “limpo” em uma clínica, é uma situação fácil. "Mas quando a pessoa volta para a sua vida e seus problemas, ela recai",

Em outra entrevista concedida à Folha de São Paulo, desta vez por escrito, delineou melhor sua impressão:

Aquela imagem do engenheiro que perdeu tudo e foi morar na cracolândia é a raridade da raridade. A droga é efeito, não causa da exclusão. A pessoa já vive excluída socialmente, e sua miserabilidade faz a droga florescer. Há uma grande diferença entre o usuário ocasional e o dependente. Para o segundo, a droga, seja álcool, seja crack, não é recreacional, é fuga”

Quando a gestão municipal de João Dória trouxe à tona, novamente, a internação compulsória, Dartiu disse ao Brasil de Fato:

“Para você ter uma ideia, mais de 90% de quem é internado contra a vontade recai e volta a usar drogas menos de um mês depois da internação. Ou seja, a eficácia é tão baixa que não se justifica do ponto de vista médico. Isso sem mencionar as atitudes que são tão afrontosas às liberdades individuais, aos direitos humanos. Então, eu acho lamentável que a gente, em 2017, esteja ainda voltando ao retrocesso"

Ao Mídia Ninja, disse:

“A minha impressão é que estamos indo na contramão da história, cada vez mais retrógrado nas políticas públicas para drogas. Embora a gente veja uma tendência mundial mais reacionárias, o mundo inteiro está revendo suas políticas de drogas e se flexibilizando. Há vários países regulando e legalizando. Os Estados Unidos e o Canadá, por exemplo, estão indo para uma linha francamente de redução de danos, se abrindo para outra visão, muito mais parecida com a Holanda.”